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Nova Consulta

Jornal/Revista: Folha de S. Paulo
Data de Publicação: 22/07/1990
Autor/Repórter: Wagner Carelli

O CASO PFEIFER

Sorrisos enigmáticos surgem em vários pontos de sua boca enorme: a única perfeita entre as manequins brasileiras ouve alguém perguntar o seu nome. O segurança Teixeira, à saída dos estúdios Herbert Richers, no bairro da Usina, Rio, espera a resposta debruçado sobre a janela do Uno 88, cor prata, que ela dirige; tem um lápis apontado contra formulários presos num porta-papéis. A cabeça magnífica da mulher no alto de seu metro e 81 encosta no teto do carro; os olhos por trás dos óculos muito escuros, quatro graus e meio de miopia para cada um, fixam o infinito possível no caos da rua Conde de Bonfim; o pé alongado, de tendões tensos na sapatilha 39, aperta o acelerador em golpes curtos. A voz de sotaque indefinível responde com erres que às vezes se arrastam, às vezes não:

- Pfeifer. Sílvia Pfeifer.

O tom é grave, transmite auto-suficiência e é em algum ponto ameaçador - como o que apresenta Bond, James Bond. O guarda Teixeira reconhece uma estrela e anota o nome desconhecido sem ousar pedir que o soletrem. Era a manhã de quinta-feira, 12 de julho, o Rio sucumbira a temporais e a uma greve de motoristas de ônibus, as gravações da Globo no estúdio estavam suspensas em respeito à morte da mãe de um diretor de televisão e Teixeira agia com a cautela de quem passa ao largo dos frangos nas encruzilhadas. Abriu os portões e Sílvia Pfeifer arrancou ladeira abaixo em direção ao Flamengo e a casa. Em uma semana seria célebre, ela sabia, e ninguém mais teria a insolência de tratá-la como a um desconhecido.

Seu nome e rosto já são perfeitamente decifráveis depois dos quatro primeiros capítulos de "Boca do Lixo" , a minissérie -"thriller" que Sílvio de Abreu escreveu para a Globo e para uma atriz que ainda não existia: aquela que tivesse o inalienável dom da elegância. A transformação de Sílvia Pfeifer nessa atriz permanece um mistério, porém. Todas as premissas parecem equivocadas.

A emissora não sabia o que querer. Partiu do sucesso adversário da modelo Cristiana Oliveira, profissional de expressão diminuta no mercado do estilo; depois aplicou-se a urna lógica rudimentar, formulou um obscuro silogismo no qual "elegância é igual a moda, manequim está na moda, logo manequim virou Manchete'' e partiu no encalço das pistas que julgou elementares. É um fenômeno alheio às ciências da dedução que tal investigação tenha chegado à elegância absoluta da manequim única.

O caso Sílvia Pfeifer é igualmente complicado quando se avaliam as circunstâncias em que a protagonista praticamente desaparece como manequim. Mulher de 32 anos, profissional de ganhos e reconhecimento extraordinários há 13, casada há oito com um homem que nasceu bem-sucedido e que conheceu na adolescência, mãe, torna-se atriz temporã de televisão no momento em que o mercado internacional da moda hipervaloriza as modelos "maduras". A primeira hipótese sugere que a manequim preferida de Giorgio Armani estaria sufocada pelo próprio e inacessível mistério. "A modelo Sílvia Pfeifer vende uma imagem de perfeição inatingível, como se fosse imaterial" , registra em depoimento. Ela se considera uma personagem mítica oposta a Cláudia Toledo, o papel que representa em "Boca do Lixo". "A Cláudia usa a projeção pública para conseguir o que quer, ou seja, tira do mito para dar ao que ela é em carne e osso; a manequim Sílvia luta por colocar alguma carne e osso no próprio mito."

Muito esperta. De Sílvia Pfeifer o detetive Marlowe não poderia dizer, com o cinismo dos misóginos, que "pensar, para ela, seria sempre uma chateação". Seu rosto é um livro de cismas ininterruptas, escrito em braile e lido em voz alta. Alfred Hitchcock teria problemas, como teve com Paul Newman, de arrancar-lhe um único e simples olhar neutro. Sílvia encosta-se nos amplos vitrôs que enquadram o Pão-de-Açúcar e o morro da Urca na sala de seu apartamento beira-mar; busca Niterói no horizonte, com infinito tédio, e atribui aos astros a marca meditativa do caráter. "Sou Peixes com ascendente em Peixes, Lua em Touro. Meu Saturno fica exatamente no meio do céu, daí essa coisa exigente e racional demais. Imagine, um Saturno bem aí, nesse meiozinho..."

Os dedos angulosos da manequim balançam um pingente de flores de ouro esmaltado, relíquia pendurada no pescoço sobre o fundo creme da malha de cashmere. Na janela, a silhueta comprida recortada contra o céu é um alvo fácil para as emanações saturninas. Ela provoca uma conjunção fisico-astral que poderia levar um homem ao crime, e permanece indiferente ao perigo. Não há nela um só traço da sordidez que o criador de Marlowe, Raymond Chandler, atribuiu a suas melhores personagens -mas o escritor Rubem Fonseca a identificou como a prova material, viva, pré-existente, de uma das suas.

Foi como Fonseca tornou-se, aliás, um dos implicados no caso Sílvia Pfeifer.

Pode-se reconstituir sua participação. Era uma tarde quente de 1988 quando o telefone tocou no apartamento da ainda manequim. Ela não lembra que horas marcava seu Lanco, o velho e inseparável relógio de pulso, modelo masculino, presente do marido dedicado, amoroso, simpático, rico. "Lembro-me apenas que estava muito tranquila no meu canto". Do outro lado uma certa Graça Motta, irmã de um também certo Nelsinho, usava todos seus poderes de sedução para convencê-la a fazer os testes de vídeo que definiriam o elenco de um longa-metragem "muito importante". Graça afirmava que Sílvia era fisicamente igual à principal personagem do filme. Tratava-se de "A Grande Arte", adaptação para o cinema do romance homônimo de Rubem Fonseca, dirigida por Walter Salles Jr.. Sílvia fez os testes com a curiosidade divertida dos que nada têm a perder. "Fui aprovada: eu era modelo e contracenava com algo que me era íntimo, a câmera; acharam que eu tinha dom e corresponderia, desde que me preparasse". Preparar-se significou cinco meses de aulas intensivas de interpretação com Bia Lessa; outros cinco de voz, com Gloria Beutenmuller. Ela caíra na cilada.

Seguiram-se oito meses de ensaios, interrompidos um único dia por um homem que poderia ser um inspetor e chamar-se Varela. Era Rubem Fonseca, e aquele o primeiro de três encontros entre ela e o escritor. O segundo, na casa dele. Para que? "Eu queria saber mais sobre o personagem: tivemos um papo de amigos, um papo entre uma personagem e seu autor, e uma sessão de análise." Ele achava que Sílvia não era uma simples e adequada intérprete: era a própria personagem. O papel só podia ser dela; ela saíra da cabeça do autor, uma cabeça em que não havia dúvidas - as dúvidas estavam todas nas cabeças dos produtores do filme. Sílvia veia a saber que perdera o papel depois de um ano e meio de trabalho. Não lhe explicaram como.

Foi o fim da inocência. ''Era como se tivessem mandado que eu ficasse sentada, quietinha; se eu me comportasse me davam um pirulito desse tamanhão - na hora, tiraram o pirulito da minha boca". Ela deixara o marido entregue aos negócios, a filha à babá, abandonara duas temporadas. européias de desfiles e cultivara uma gastrite. "Fui construída, como atriz, para fazer exclusivamente esse papel; abri mão de ser modelo, consumi minha vida familiar até, de repente, sentir que estava sendo enrolada e dizer até logo: não faria mais um bom trabalho mesmo se pintasse".

Sílvia embarcou em novembro rumo a Nova York, outra vez como manequim, e parecia deixar atrás Casablanca e Humphrey Bogart. Voltou em fevereiro sem completar a programação de desfiles e fotografias: tornar-se atriz,'' compreendeu, era seu único destino. "Eu não tinha mais tesão no trabalho de modelo", diz com grande ênfase na expressão mais forte da sentença. Pensou: "Tenho 32 anos, marido, filha, e vontade de fazer algo novo; se não fizer agora, não faço mais.''

Procurou a mestra Bia Lessa e implorou por cursos e orientação. Bia pronunciou-se em tom oracular: "Você está pronta: agora tem de ir pra arena e ser comida pelos leões."

Bia foi a última testemunha ocular da manequim Sílvia Pfeifer. Sílvia voltava dos ensaios de "Orlando", peça adaptada do romance de Virginia Woolf e dirigida por Bia Lessa quando, às 21h00 da noite de 11 de junho, o diretor Roberto Talma lhe fez um convite por telefone. Queria que fizesse o papel principal de "A Farsa", uma então planejada minissérie da Globo que depois se chamaria "Boca do Lixo". Às 23h00 ela desapareceu sob um pacote de folhas impressas com a sinopse do programa. Calcula-se que mergulhou sob 550 cenas em 15 dias de gravação em São Paulo, uma semana a 250 km daí, em. Avaré, e duas semanas no Rio. O executivo global Daniel Filho lembra-se de tê-la visto dois meses antes em seu escritório, apresentada por Bia Lessa. Teria comentado com a manequim que parecia talentosa, tinha uma cara bonita e nova. Na primeira oportunidade iria chamá-la para trabalhar. Era uma dedução elementar.

O ESTILO DO DESTINO - Sílvia Pfeifer costuma reduzir a moda ao jargão e tratá-la com a soberba e o distanciamento de quem se sabe um ícone do estilo. "É tudo reflexo sócio-econômico: cor, preço, forma. Se há um período muito longo em que prevalece o azul, os estoques das outras cores se acumulam e o mercado começa a exigir alternância", diz, quase professoral.

A moda não tira seu sono, e lhe parece até que vai bem. "Há alguns anos eu desfilei com um vestido tão justo na parte de baixo que me obrigou a andar com passos de japonesinha". O erro não se repetirá, ela imagina: o estilo se fará para sempre à base dos padrões americanos - práticos, confortáveis, elegantes. "Qual a roupa que se compra? É Chanel, que não emperiquita a mulher e deixa que ela circule alinhada da mesa de trabalho para a do jantar."

As modelos também passam a ser "práticas" -"Nesta década, caem fora as jovenzinhas e entram as mulheres na idade de consumir"- e só suas almas permanecem românticas. "Quando se é bonito e se trabalha só com a gente mais bonita 24 horas por dia é difícil imaginar que o aluguel possa estar atrasado." Ela, de fato, nunca o imaginou.

ATRÁS DA LENTE - Sílvia pelos fotógrafos

. J.R. Durou: Sílvia Pfeifer é a modelo mais maravilhosa, e eu nunca a fotografei à altura. Soube da minissérie, achei ótimo. O caminho natural de toda boa modelo é mesmo se tornar atriz.

. José Antônio: Quando ela caminha, na minissérie, ela destrói: é uma rainha. Mas é uma menina mimada, uma sinhazinha que bem poderia ter uma mucama dando suquinho. Quero ver como ela se vira saindo da paparicarão do mundo da moda.

. Paulo Vainer: É uma das poucas modelos elegantes do Brasil. Aqui o negócio é meio precário. O resto é tudo enganação. Gostaria muito de trabalhar com ela.

. Armando Prado: É bárbara, superchique, a Adalgisa Colombo dos anos 90. Ela tem trabalhado cada vez menos, agora provavelmente vai parar. Uma pena.

. Fernando Louza: Ela é perfeita. É bonita, educada, paciente, dá tudo que um fotógrafo precisa. E toda modelo tem de ter um pouco de atriz.

. Isabel Garcia: As modelos constroem uma personagem, com ajuda da produção e do fotógrafo. Sílvia faz isso naturalmente. Ela tem um estilo muito pessoal.

CLIP

. Nome: Sílvia Escobar Pfeifer

. Nascimento: 24 de fevereiro de 1958, em Porto Alegre, RS

. Signo solar, ascedente, e chinês: Peixes e Peixes, Cachorro

. Pai: Antônio Carlos Alves Pfeifer, 60, de São Borja, RS, engenheiro

. Mãe: Lúcia Marina Escobar Pfeifer, 58, de Porto Alegre, RS. "Profissão: mãe"

. Irmãos: Bruno, 31; Cláudia, 27; Luciana, 16

. Marido: Nelson Chamma Filho, 33, carioca, economista, dono de uma mineradora

. Filha: Emanuella Pfeifer Chamma, 5 anos

. Profissão: "Ainda tenho um pé na carreira de manequim, mas estou pisando bem forte com o outro na carreira de atriz"

. Escolaridade: "Fiz dois anos de Direito"

. Religião: cristã

. Medidas: cintura, 67; quadris, 94; busto, 89

. Dieta? "Não. Como bem e sempre"

. Atividade física? "Atualmente não tenho. Fui jogadora de vôlei em Brasília, disputei campeonatos brasileiros"

. Analista: Jorge Alberto Costa e Silva. "Linha existencialista" (sic)

. Sonho recorrente: com elevarores. ''Eles param, não sobem nem descem"

. Rituais esotéricos: "Gosto muito da filosofia Seicho No-le e acompanho os pensamentos das folhinhas deles"

. Superstição: "Não deixo as visitas abrirem a porta ao sair de casa. Abro eu mesma, para que voltem. A não ser que eu não queira"

. Jóia: "Difícil usar, mas gosto das coisas do Antônio Bernardo"

. Guarda-roupa: Maria Bonita, Georges Henri, algo de Andrea Saletto, Frankie Amaury, Giorgio Armani"

. Lingerie: "Tá muito cara. Sutiã não é sempre que uso"

. Estilistas: Giorgio Armani, Romeo Gigli

. Fotógrafo: Fernando Louza

. Gadgets: videocassete, toca-discos a laser

. Música: Chet Baker, Billie Holliday, Simply Red. "Adoro Vivaldi por causa dos violinos"

. Receita de sucesso: "Basta uma boa administração do talento"

. Disciplina ou timing? "Timing, ajudado pelo hábito"

. Dinheiro: "Viveria bem com pouco" (note-se o condicional, n. da r.)

. Cor: "Preto para vestir, azul para olhar"

. Livro e filme: "O Vermelho e o Negro", ("Muito chocante"); "Cinzas no Paraíso" . Ator, atriz: Laurence Olivier, Robert De Niro, Ingrid Bergman, Nastassia Kinsky

. Jornal e revista: "Adoro ler a Folha. Entre as revistas, no momento, a 'Vogue' italiana"

. Milão ou Paris?: Se eu pudesse trocar os habitantes delas, Paris. tudo que é italiano é melhor que o francês: queijo, vinho, comida, roupa. E as pessoas são muito mais bonitas"

. Defeito que esconde: "Nenhum. Gosteria de ter os joelhos um pouco mais bonitinhos, e a coisa mais feia que eu tenho são os meus pés"

. Ultima gafe: Comentei com o Roberto Talma uma coisa que eu não sabia que ele ainda não sabia e não deveria saber por mim"

. Já sentiu vontade de matar? "Quis torcer alguns pescoços"

. Já foi esnobada? Rejeitada? "Em Paris cortei um peixe do lado errado e fui motivo de chacota. Quando era menina me chamavam de espanador da lua"

. Imagem de horror inapagável: "Um doberman que me encurralou em um corredor"

. Prato preferido: massas; comida japonesa.

. Prato odiado: miúdos

. Bebe? "Adoro tudo que tiver álcool"

. Com quem não se sentaria à mesa? Com Leonel Brizola

. Personagem: Lawrence da Arábia

. Palavra: paz

. Estranho no paraíso: "Brizola no Rio. Que é que ele tem de fazer aqui?"

. Avis rara: Jacques Cousteau

. Objeto do desejo: "A imagem que vem é sempre a de uma boca"

. Passarela da moda ou do samba? Do samba

. Sorrir ou fazer boquinha? "Sorrir, claro"

. Passadas largas ou curtas? "Largas, sem pressa, com calma"

. Segredo da meia-volta: "Ter certeza do momento de virar, para que lado, e se alguém puser o pé na frente você sai"

. Por volta da meia-noite: "Intrigo, romance, sedução, trama policial"

. Cena do crime: "Tá na caleça. Acabei de ensaiar. Não posso dizer.

. Cristiana Oliveira ou Sílvia Pfeifer? ''Cada uma na sua''.

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Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 12892