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Nova Consulta

Jornal/Revista: O Globo
Data de Publicação: 30/10/1976
Autor/Repórter: Artur da Távola

TODO MUNDO GOSTA DE COM QUEM CONCORDA

Uma das minhas manias é a de a de comemorar coisas sozinho. Já comemorei até o nascimento dos filhos do meu gato, o Jung, com ele. Só nós dois. Nasceram em outra casa, a da gata, a Jane. Mas eu e o Jung comemoramos. Vá se contar isso pros outros e "pronto:.. pirou de vez."

Desde garoto comemoro silêncios e solidões. Mas é sem festa. É interior. Sem bulha nem bolhas. De dentro para fora. Como deixarei de comemorar meus quatro anos de crônicas diárias aqui no GLOBO?

Ontem teci algumas considerações sobre essa estranha categoria chamada "critico" de televisão. Hoje estendo o assunto e amanhã, com a autorização do chefe, tendo em vista que é dia de aniversário, e mereço o presente de uma concessão, saio do assunto (aparentemente) para dizer algumas coisas muito francas, principalmente a quem gosta de mim, o meu competente leitorado. Considero (espero estar errado) o artigo de amanhã a coisa mais verdadeira, corajosa e melhor que escrevi.

Mas ontem eu dizia que o que se chama de "critico" de televisão é uma figura totalmente diferente do critico das artes tradicionais. Por que? Porque no caso da televisão ele é um participante direto do processo do fazer. Ele influi nos canais, espécie que é, de advogado do consumidor, o telespectador.

Ao mesmo tempo ele leva uma bruta vantagem sobre todos os demais jornalistas. Uma sopa incrível! O jornalista é o sujeito que escreve sobre o que os outros não viram. Ele traz a nova. Já o "critico" de televisão escreve sobre o que os outros viram. E mais: ele é alguém que viu junto. Que viveu em comum a emoção, a raiva, o apoio, o aplauso, a lágrima ou a indiferença.

Este fato, aparentemente irrelevante, o de ter vivenciado junto com o público, muda, inteiramente, a relação do "critico" de tevê com o leitor. Este já não vai ao critico à cata de uma orientação (como ocorre em cinema, teatro, livro ou artes plásticas). Não! O leitor corre para o colunista de televisão em busca de: 1) confirmação da opinião que teve; 2) veiculo da sua raiva; 3) expressão de sua emoção; 4) analista do fenômeno de comunicação que se deu ou com o programa, ou com o impacto do fato apresentado ou com o artista; 5) tradutor de instâncias que o público (telespectador-leitor) sentiu mas não soube definir ou não conseguiu formular com clareza.

É, portanto, essa figura esdrúxula chamada "crítico" de televisão, alguém com quem o público passa a estabelecer não um encontro de natureza cultural, ideológica ou estética (como ocorre com a crítica de teatro, cinema, livro e artes plásticas), mas um encontro em forma de comparsaria, de testemunho, de confidente, de convivência, de intérprete de algo que foi vivido e sentido ao mesmo tempo e já passou.

Se eu sou critico de cinema ou teatro, por exemplo, vejo algo e considero de alto nível, ao passá-lo para o público eu tenho uma barreira terrível: o público ainda não viu o que me emocionou. Então eu tenho que lhe contar por que é emocionante, conseguindo - de quem não viu - uma emoção que justifique a minha. Eu - se sou critico de cinema e teatro - pego o publico frio. Não aquecido, ainda, pela mensagem estética.

Com televisão é diferente e mais fácil para o jornalista: eu e o público nos emocionamos (ou não) juntos, ao mesmo tempo e pela mesma coisa (eu na minha casa e ele na dele). Se vivemos juntos a mesma emoção, quando o leitor a encontrar cristalizada sob a forma de um artigo ele vai se sentir representado, ampliado, protegido, distinguido; ele vai se sentir "belonging" isto é pertencente ou participante de uma mesma comunidade espiritual.

Aí vai atribuir ao "critico" de tevê virtudes, qualidades de inteligência e de sensibilidade que pertencem a ele, leitor, ou à obra vista em comum e não ao "critico". O "critico" de televisão é, pois, um beneficiário, uma espécie de felizardo. É alguém que se nutre muito mais dos méritos intelectuais e sensíveis do próprio leitor, do que do mérito eventual dos artigos que escreve.

Em termos de comunicação é altamente eficaz a fidelidade que nasce de um leitor encontrar alguém que (segundo ele leitor) "pensa como ele" ou "diz exatamente o que ele tinha vontade de dizer" ou "escreve exatamente aquilo que ele comentou com os filhos durante o programa". Todo mundo gosta daquilo com que concorda, ou de quem com ele concorda.

Este caráter de comparsaria com o leitor é um dado novo na história da crítica jornalística, porque advém das circunstâncias de um meio também novo: a televisão. Por isso ele não se assemelha aos cânones tradicionais do gênero critica, gênero de tantos luminares.

É por isso, ademais, que o cronista a quem chamam de "critico" de televisão, é alguém que pode dar expansão a coisas suas, pessoais, brotadas da sua sensibilidade ao olhar a vida, o mundo e a si mesmo. Na medida em que a televisão é uma espécie de caleidoscópio da vida; na medida em que ele é um comparsa do público; na medida em que sua relação com o leitor se dá em função de algo que ambos vivenciaram juntos e ao mesmo tempo (cada qual em sua casa); a relação do cronista com o público é uma espécie de comunidade espiritual, repito. Por ser assim, também os temas que sensibilizam o cronista ao olhar o mundo (do qual a tevê é mera representação fragmentária, dispersiva mas riquíssima em variedade e urgência) devem e podem chegar ao público, vez por outra, sem a linguagem técnica dos dias de analise, em forma de crônica que fale da vida. Amanhã concluo, mas de maneira bastante diferente.

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Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 1579