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PUC-Rio
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Jornal/Revista: Jornal do Brasil Data de Publicação: 11/07/1992 Autor/Repórter: Ana Cláudia Souza
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RETRATO COLORIDO DE UM TEMPO NEGRO
Naqueles anos, as meninas eram brotos, os rapazes playboys e a juventude, talvez como nunca, estava decidida a enfrentar qualquer barra para mudar o mundo. A contestação era palavra de ordem: contra-cultura, cinema-novo, tropicalismo e, acima de tudo, rebeldia e resistência. Quem não viveu aqueles loucos e apaixonados anos 60 ou sequer leu ou discutiu sobre eles vai ter a oportunidade de, a partir desta semana, ver na televisão a trajetória de uma geração que chegou a sacrificar a sua vida para transformar o mundo - a geração dos Anos rebeldes.
Inspirada em dois livros que retratam parte do que se viveu naquela década - 1968, o ano que não terminou, de Zuenir Ventura, e Os carbonários, de Alfredo Sirkis - a minissérie de Gilberto Braga e Sérgio Marques, que estréia nesta terça-feira na TV Globo, às 22h30, promete polêmica. Principalmente porque é a primeira vez que a televisão brasileira produz um programa de ficção mostrando os anos em que os sonhos enfrentaram, como nunca, a crueza. da realidade. "É uma forma de mostrar como algum dia, neste mesmo país, pessoas se preocupavam com o todo, com o onde nós vamos chegar", diz Malu Mader, a Maria Lúcia, personagem principal da minissérie de 20 capítulos.
"Anos rebeldes deixa de ser uma minissérie para ser uma coisa que transcende", acredita Dênis Carvalho. "O país estava em ebulição como agora", compara o diretor, que pediu à equipe fotos da época em que se passa a história para fazer a abertura da minissérie. "Topei este sacrifício porque acho a minissérie muito importante para o atual momento nacional'', conclui Dênis. "Anos rebeldes tem a oferecer uma coisa simples: um pedacinho da história daqueles anos, que minha geração não conhece", completa Cássio Gabus Mendes.
A história começa em 1964 - quando os protagonistas são alunos do Colégio Pedro II e a repressão ainda não havia se mostrado tão violenta quanto nos anos seguintes - e termina em 79, com a volta dos exilados. À medida que o tempo passa e a situação do país piora, os personagens vão mudando de comportamento, como acontece com a rica e alienada Heloísa (Cláudia Abreu) dos anos 60, transformada em hippie nos 70. "O mérito é que Gilberto Braga está muito maduro como autor e juntou uma história de amor com este momento do Brasil", resume Dênis Carvalho.
Zuenir Ventura ainda não viu na tela, mas aposta que Anos rebeldes será "um marco na televisão brasileira". "A gente reclama que o país não tem memória, que é amnésico. Aí vem um projeto ousado como esse, que será transmitido para milhões de pessoas e que teve um trabalho de pesquisa exaustivo e impressionante", diz o autor de 1968, o ano que não terminou, sem poupar elogios a Gilberto Braga, Dênis Carvalho e Sílvio Tendler.
O livro do jornalista é um dos guias para entender o que se passou naquele efervescente 68, ano em que a liberdade de expressão sofreu o seu mais duro golpe: o AI-5. ''Gilberto Braga consegue devolver o valor essencial daquele momento, que é a paixão. E acho que a grande atualidade da minissérie, principalmente para os políticos, vai ser mostrar que política pode ser ética", acredita Zuenir.
Mais reticente, Alfredo Sirkis, autor de Os carbonários, ainda,não tinha lido, até semana passada, o roteiro enviado por Gilberto Braga. Mas diz que foi a simpatia e o fato de gostar muito do trabalho do escritor que fizeram com que aceitasse ceder à Rede Globo o direito de usar passagens de seu livro. "Sei que Gilberto Braga vai fazer uma obra correta, mas fiquei preocupado com a auto-censura que a Globo fez ao texto. Espero que isso não tenha ido ao ponto de descaracterizar a obra no seu aspecto básico", diz Sirkis. "Estou sabendo que Anos rebeldes não é uma obra política, mas uma história de amor ambientada nos anos de chumbo. Só que este pano de fundo tem que ser honesto. Não se pode atenuar o terror que foi aquela época, em termos de repressão e cerceamento de liberdade", diz ele.
ELENCO TEVE LIÇÕES DE POLÍTICA - João Alfredo ama Maria Lúcia. Tudo normal, se no meio do caminho não houvesse o movimento estudantil, o golpe militar de 68 radicalizando o golpe de 64, a guerrilha urbana - tudo do que João Alfredo participa e que Maria Lúcia faz questão de manter à distância. O conflito que opõe individualismo a idealismo é a base de Anos rebeldes, uma história de amor que tem como pano de fundo o cenário político nacional, como repetem sempre autores, diretores e elenco.
"O grande problema que a gente discutiu foi o tipo de sensação que essas pessoas tinham. Elas acreditavam que no dia seguinte iam resolver tudo", diz Cássio Gabus Mendes, que interpreta João Alfredo. A solução para mostrar aos atores mais jovens o que se passou no país durante a ditadura militar foi reunir o elenco em torno de Bete Mendes (Carmem), Francisco Milani (Camargo) e Gianfrancesco Guarnieri (Salviano), participantes ativos dos anos de chumbo. "Era disso que eles precisavam'', afirma Dênis Carvalho.
O diretor tem razão. Malu Mader, por exemplo, diz que se modificou depois que estudou esta fase da história do país. "Tomei consciência de que política está em qualquer lugar e que a omissão também é uma forma de se colocar politicamente", prega Malu, expoente, como ela mesma diz, de uma geração individualista e cética. "O individualismo da minha personagem tem muito a ver com a filosofia de vida de agora", compara. "É muito importante para o ator, normalmente egocêntrico e vaidoso, participar de um projeto como este. Há muito tempo não sentia isso", confessa Malu Mader.
PERSONAGENS E A HISTORIA
- Maria Lúcia (Malu Mader) - Individualista, é apaixonada por João Alfredo, com quem estudou no Colégio Pedro II. Mas a luta armada e a militância de João impedem a união dos dois. É o centro do triângulo amoroso que envolve João e Edgar.
- João Alfredo (Cássio Gabus Mendes) - Idealista, vive o dilema da paixão por Maria Lúcia, que nunca consegue se concretizar porque não se encaixa em sua vida de ativista. Engajado, é perseguido pela ditadura e obrigado a sair do país. Volta com os exilados, em 1979.
- Edgar (Marcelo Serrado) - Melhor amigo de João Alfredo, com quem forma no colégio um quarteto inseparável, completado por Galeno e Waldir (André Pimentel), o mais pobre deles. Rompe a amizade com João porque não concorda com sua opção política. Apóia a luta armada, mas sua preocupação maior é a ascensão profissional. Apaixonado por Maria Lúcia, casa-se com ela, mas o jogo vira no fim da minissérie.
- Heloísa (Cláudia Abreu) Menina rica, de idéias avançadas, é dona da casa em Ipanema que sedia a maior parte das reuniões. Filha do banqueiro Fábio (José Wilker) e de Natália (Betty Lago), e alienada até que a realidade chega perto e Heloísa passa por uma transformação profunda, mudando radicalmente seu posicionamento e seu visual.
- Galeno (Pedro Cardoso) - O hippie da história. Escritor, não se envolve nos problemas políticos. Sua questão é cultural. Antenado com as influências estrangeiras, se vê às voltas com a censura quando ela se instala no país e veta seus textos.
- Lavínia (Paula Newlands) - Amiga de Maria Lúcia, noiva de Gustavo (Maurício Ferraza).
- Damasceno (Geraldo Del Rey) - Jornalista, pai de Maria Lúcia. Militante de esquerda e o guru da juventude. Casado com Carmem (Bete Mendes).
- Nelson (Thales Pan Chacon) - Professor de violão de Heloísa, primeiro homem da vida dela.
- Mais: Professor Avelar (Kadu Moliterno), Regina (Mila Moreira), Salviano (Gianfrancesco Guarnieri), Abelardo (Ivan Cândido), Valquíria (Norma Blum), Helmut Hadenauer (Odilon Wagner), Queiroz (Carlos Zara), Sandra (Deborah Evelyn), Ubaldo (Tuca Andrada), Teobaldo (Castro Gonzaga), Marta (Lourdes Mayer), Zuleica (Georgia Gomide), Olavo (Marcelo Novaes).
ENTRE HENRY MILLER E PINGÜINS DE LOUÇA - De 1964 a 1972 muita coisa aconteceu no pais, principalmente no Rio de Janeiro, onde se passa a minissérie: Anos rebeldes. O passado, embora recente, precisou ser reconstituído nos mínimos detalhes para dar a maior veracidade possível à história, e o público vai perceber que as mudanças foram muitas. Para tudo isso acontecer, os estúdios da Cinédia, em Jacarepaguá, ganharam um ar de anos 60/ 70 e os almoxarifados viraram verdadeiros museus com peças recolhidas em antiquários, brechós e acervos de colecionadores. Tudo funcionando e com cara de novo para que o público sinta a maior verdade possível na história escrita por Sérgio Marques e Gilberto Braga.
Os cenários de Anos rebeldes levam a assinatura do famoso casal Cacá e Mário Monteiro, que em seu currículo colecionam sucessos como Gabriela, Roque Santeiro, Tieta e Primo Basílio, além de shows e desfiles de escolas de samba. Os objetos que compõem os cenários são da lavra investigativa de Cristina Médicis, uma produtora de arte com 15 anos de TV Globo e passagens por O dono do mundo, Eu prometo, Dancin'Days, Vale tudo, Malu mulher. Para se ter uma idéia do volume de trabalho do trio e suas equipes, é como se tivessem montado e aparelhado 35 casas, com a arquitetura interior e todos os móveis e objetos necessários. E tudo isso em pouco mais de 30 dias, o prazo entre o recebimento da sinopse e o início das gravações.
Para chegarem ao resultado final, os caminhos foram muitos. Além das dicas do próprio autor, Gilberto Braga, revistas como O Cruzeiro, Realidade, Jóia e Senhor serviram de apoio para o resgate do estilo dos objetos. Mas muita coisa partiu das lembranças de Mário Monteiro, que na época em que se passa a minissérie: já trabalhava em decoração de interiores na loja Decorações de Hoje, em Copacabana.
Assim, nas casas de Anos rebeldes serão vistos os velhos refrigeradores Kelvinator, encimados por indefectíveis pingüins de louça, jarros com palmas ou rosas em cima das mesas, vasos com antúrios, ficus e costelas-de-adão nas varandas, colchas de fustão nas camas, telefones em baquelite preto, quadros de Bandeira, Goeldi, Mabe, Milton Dacosta e Ivan Serpa nas paredes e estofados com acabamento em vivos ou rolotês.
"Até 1968 os objetos, a decoração e as roupas lembravam muito os anos 50. Só com o início do movimento hippie e da Tropicália é que houve uma mudança de estilo", explica Cristina Médicis, que pesquisou detalhes inimagináveis, como a cor de esmalte que se usava, o feitio das placas dos automóveis, os penteados e até os livros, que eram lidos: Nexus, de Henry Miller, Quarup, de Antônio Callado e A arte de amar, de Erich Fromm. (Mona Bittencourt)
PRODUÇÃO REMONTOU SHOW E CORREU SEBOS - Entre as seqüências mais importantes de Anos rebeldes estão as cenas que mostrarão a repressão militar aos estudantes. Para dar mais realismo, a produção fez um trabalho rigoroso. "Pesquisamos os carros que o Exército usava naquele tempo, alugamos vários jipes antigos e mandamos pintá-los. Os figurantes que fazem os soldados foram treinados por um assessor que contratamos especialmente para ensinar coisas como ordem-unida e a maneira correta de manejar fuzis e metralhadoras. As armas são todas antigas e verdadeiras e os uniformes foram feitos especialmente para estas cenas", conta Cristina Médicis.
A literatura tem um capítulo especial na história. Como um dos personagens, Damasceno (Geraldo Dei Rey), é jornalista e escritor, foram comprados em sebos 2 mil e 500 livros para compor a sua biblioteca. E a produção é tão detalhista que todos os volumes são de publicações que existiam na época. Mas o trabalho não parou aí. Uma das principais dificuldades foi conseguir uma redação de jornal à antiga. A saída foi o jornal última Hora, recentemente fechado. É nesse cenário que Damasceno, pai de Maria Lúcia (Malu Mader), vai produzir seus artigos bombásticos que acabam por levá-lo à prisão.
Outra reconstituição que, com certeza, vai deixar muita gente saudosa é a do hall do Cinema Payssandu, no Flamengo, um must dos anos 60/70. Os filmes que faziam delirar jovens e intelectuais estarão em cartaz. Um deles é Opinião pública, de Arnaldo Jabor, que teve o seu cartaz de propaganda refeito. Além disso, o público também vai rever o famoso Teatro Opinião, com suas arquibancadas, e vai até acompanhar um show com a cantora Nara Leão, representada por sua filha Isabel Diegues.
DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE AQUELA ÉPOCA - A TV Globo, cautelosa, preferiu confinar os fatos históricos a um simples pano de fundo para as desventuras amorosas de Maria Lúcia e João Alfredo, os personagens centrais de Anos rebeldes. Mas naqueles verdadeiros anos rebeldes, a turbulência política invadia o dia-a-dia da sociedade e marcava a ferro e fogo a vida de cada um. E nada era tão simples quanto uma história de amor.
O movimento militar assumiu múltiplas faces. Inicialmente, mesmo depois de desorganizar a esquerda e desbaratar os canais de representação da sociedade civil, não chegou a sufocar de maneira absoluta todos canais de manifestação. A esquerda, embora acuada, buscou espaços alternativos através do movimento estudantil e em movimentos culturais. Aí se destacou o CPC - Centro Popular de Cultura - que tentou, através da arte, estimular a consciência política das massas.
Aparecem o Cinema Novo e os grandes nomes da música popular.
O movimento militar, entretanto, se dividiu e se radicalizou. Em dezembro de 1968, acuado pela linha dura, o então presidente, Marechal Arthur da Costa e Silva, abriu caminho para a repressão total, com o Ato Institucional nº 5, o AI-5, que simplesmente suspendeu todas as garantias constitucionais e outorgou aos militares o mais absoluto poder. Abriu-se, assim, a fase do terror. O movimento estudantil foi sufocado e eliminadas as mais simples formas de oposição. Começou, então, o exílio para muitos, enquanto outros, sem alternativas de ação, partiram para a luta armada, associada a uma ampla agitação revolucionária que se espalhava por toda a América Latina. A reação militar foi violenta e já na segunda metade dos anos 70, todos os grupos guerrilheiros estavam praticamente aniquilados, com seus militantes - quase todos jovens idealistas - mortos ou foragidos. Foi o tempo da tortura, da ação do governo à margem dos mais elementares princípios de direitos humanos.
Esgotada a luta armada, veio governo Geisel com sua palavra de ordem: "abertura lenta, gradual, mas segura". A distensão trouxe de volta a ação política, agora não mais armada, e voltaram às ruas as grandes campanhas nacionais por uma nova Constituição que removesse o "entulho autoritário" e pela eleição direta para presidente da República. No bojo desta nova fase do governo militar veio a anistia, que permitiu a volta de todos os que tinham sido ate mesmo banidos do país. A liberdade voltava a abrir as asas sobre nós, 25 anos depois de que tudo começou.
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Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 18527