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Jornal/Revista: Folha de S. Paulo
Data de Publicação: 24/04/1993
Autor/Repórter: Sérgio Augusto

TV CULTURA RESSUSCITA HOJE 'I LOVE LUCY'

'Furacão ruivo' Lucille Ball inventou com sua série a comédia de situações, mina de ouro da TV americana

O que as novas gerações acharão de "I Love Lucy" (1951-1957), que a TV Cultura ressuscita a partir da noite de hoje?

Talvez achem pouca graça, o que me parece compreensível; a série, afinal, pertence a uma época aos olhos de hoje pré-histórica. Muitas "gags" hão de parecer surradas -e de fato estão. Muitas situações não conseguem disfarçar o seu ar "déjà vu" -mas como evitá-lo depois de 40 anos? Ainda assim, é possível amar Lucy e ser condescendente com os seus quiproquós domésticos. Basta não perder a perspectiva histórica: com "I Love Lucy", Lucille Ball (1910-1989), o furacão ruivo, a primeira-dama do vídeo, a Joan Crawford do pastelão, inventou a mina de ouro da televisão americana: a "sitcom", a comédia de situações. O que hoje é clichê já foi novidade. Mais respeito, moçada: "I Love Lucy" está para a televisão como "Édipo Rei" para a tragédia.

Foi Lucille quem bolou a série como uma maneira de sair do poço e salvar seu casamento com o mulherengo e estradeiro Desi Arnaz (1915-1980), fixando-o a seu lado em Nova York. Foi também dela a revolucionária decisão de filmá-la em segmentos e com três câmeras diante de um auditório, em vez de transmiti-la ao vivo. A princípio rejeitada pela cúpula da CBS, que não via com bons olhos uma série cujo galã falava com sotaque caribenho, "I Love Lucy" só emplacou graças à tenacidade do casal, que, astuciosamente, a vendeu primeiro a um patrocinador de peso, a Philip Morris.

Nada mais anos 50, os anos 50 da burguesia norte-americana: o marido é o arrimo da família, a mulher cuida da casa, os vizinhos são solidários. Ocorre que a mulher, Lucy Ricardo, tinha mais fogo na alma (ou no rabo, como queiram) que todas as outras mulheres da América juntas. Seus sonhos, suas fantasias e seus desejo; não cabiam no apartamento classe média de Manhattan que dividia com Ricky Ricardo (Arnaz), galante cubano que ganhava a vida tocando rumbas em "night clubs". Lucy queria mais da vida do que uma cozinha bem equipada podia oferecer. Como ia sempre com muita sede ao pote, não dava uma dentro. Quando se empregou numa fábrica, a linha de montagem transformou-a num robótica criatura quase tão patética quanto o Chaplin de "Tempos Modernos".

Em casa (e bota casa nisso: 67% das famílias americanas não perdiam um capítulo de "I Love Lucy", todas as noites de segunda-feira), as mulheres não introjetavam os fiascos da sra. Ricardo como um alerta para permanecerem como rainhas do lar e divas do fogão. De fato havia uma selva fora de casa, mas Lucy sempre deixava a impressão de que aquelas coisas todas só aconteciam com ela porque ela era estabanada. Tão estabanada que nem sequer na cozinha conseguiu se encontrar. Seus bolos e pães, com fermento além da conta, saíam do forno corno foguetes, não raro arrastando sua desastrada artífice pela cozinha afora.

Um dos segredos do sucesso da série foi a intimidade que de imediato estabeleceu com os telespectadores. Todos acompanhavam as peripécias do casal Ricardo como se fossem seus vizinhos, iguais a Ethel (Vivian Vance) e Fred Mertz (William Frawley). E mais: como se Lucy e Ricky estivessem encenando, com alguma licença poética, as vidas privadas de Lucille e Desi. Quando° divórcio obrigou Desi a abandonar o barco, enviuvando Lucy na segunda série, "The Lucy Show° (1962-1968), os telespectadores não mudaram de canal. Àquela altura, Lucille Ball seria capaz de manter-se líder de audiência apenas lendo o catálogo de telefones diante das câmeras. Desde que, é claro, não deixasse de fazer sutis impagáveis caretas, nem de gritar como uma foca histérica.

Singular exemplo de projeção às avessas, Lucille era tudo que Lucy gostaria de ser: dona do próprio nariz e do nariz do marido. Obsessiva e perfeccionista, tiranizava todos à sua volta. Exigia prerrogativas de estrela, monopolizava close-ups, não admitia erros. Mas entregava os pontas diante de uma boa piada. Certo dia, no meio de uma discussão, Vivian Vance não se conteve e gritou: "Quer saber de uma coisa? Vá se foder... Se é que Desi já não cuidou disso hoje". Lucille arregalou os olhos e explodiu numa gargalhada.

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Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 21377