PUC-Rio

Voltar

Nova Consulta

Jornal/Revista: O Globo
Data de Publicação: 31/10/1976
Autor/Repórter: Artur da Távola

ATO LEIGO DE CONTRIÇÃO

Meu talento é defesa.

Minha inteligência é acaso

Não sou criador, sintetizo.

Meu bom senso é medo.

Nei sei, sugo.

Meu equilíbrio tem as deformações do que é normal.

Minha lucidez nasceu da doença.

Nou sou, suo.

Minha simpatia é falta de naturalidade.

Meu galanteio é corruptor.

Não tenho gostos, tenho intenções.

Minhas admirações são inveja.

Meu espanto é covardia.

Não invento, formulo.

Minha diferença arde de desejos.

Minha doçura é timidez.

Minha versatilidade é esquizóide.

Não planto; colho, espertamente, a emoção comum.

Não fecundo porque sou hábil.

Não educo porque sou fraco.

Não desagrado porque sou dependente.

Não abalo porque sou medroso.

Meu brilho é a mascara do meu vazio.

Meu vazio é a minha verdade.

Minhas palavras são 'flatus vocis".

Não sou expulso por que acomodo.

Não crio porque pouco ouso.

Não abro caminhas, sou mero tradutor.

Não renovo porque repito.

Não ameaço porque refiro o mais fácil.

Não espanto porque me deixei amansar.

Não sangro porque desisti.

Meu NÃO tem disfarces demais.

Meu SIM, quando será integral?

Meu eufemismo é hipócrita.

Não perco o emprego porque aprendi a sobreviver.

Não digo todas as minhas verdades por medo e preconceito.

Não escrevo o que sei e sim o que finjo saber.

Não sei, nem, tudo o que finjo.

Minha frase é esconderijo.

Meu prestígio é minha insegurança.

Minha palavra não é o "sal da terra".

Minha alegria é de estufa.

Meu elogio é demolidor.

Não sou a imagem que projeto.

Não mereço os carinhos que recebo.

Não valho sua admiração.

Não sinto, sentindo, o que sinto escrevendo.

Minha modéstia é arrogante.

Minha agressão é ressentimento.

Minha ironia dá úlcera.

Minha vitória é menoridade.

Não me decido a ser definitivo.

Não venci as derrotas antigas.

Não derrotei as vitórias fáceis.

Meus ideais são ambições fantasiadas

Minha crítica é projeção.

Minha frustração escreve melhor do que eu.

Minha amargura me finge simpático.

Não consegui vencer a minha infância.

Minha coerência foi parar no sanatório.

Meu sarcasmo tem cara de anjo.

Meu riso é amortecedor, emoliente e tránsfuga.

Não sou bom, preciso da bondade.

Minha esperança e minha salvação: saber de tudo isso.

E CONFIAR E PROSSEGUIR.

P.S. - Este "Ato leigo de contrição" é a maneira mais franca e leal que encontrei para agradecer ao leitor por estes quatro anos de convívio diário.

Voltar

Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 41329