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PUC-Rio
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Jornal/Revista: Jornal do Brasil Data de Publicação: 30/07/1989 Autor/Repórter: Braulio Tavares
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UM CABARÉ DE RESPEITO
A novela Kananga do Japão estréia com bons momentos na Rede Manchete
Se a abertura de uma novela de TV é uma síntese visual e sonora do que há na novela, a de Kananga do Japão (TV Manchete, 2ª a sábado, 21h30) cumpre esta função: ali estão a produção bem cuidada, o visual irrepreensível, o background histórico e social, o trato hábil com luzes e câmaras, a coreografia fluida, os figurinos e cenários convincentes. Por outro lado, a novela tem que ir mais além do vídeoclip da abertura. A novela tem que ter carne, osso e tutano; tem que ter personagens palpavelmente humanos (até onde isso cabe na TV), tem que ter enredo e peripécias capazes de encorpar uma fantasia, de dominar as emoções do espectador, provocando nele a voluntária suspensão da descrença e fazendo-o rir ou chorar com aquela falsa-vida-alheia, que não é menos vida do que a sua. Entre esses dois pólos; estão situadas as qualidades e as limitações de Kananga em sua primeira semana no ar.
O problema principal com novelas de época reside no desejo muito natural de "reconstituir as coisas exatamente como eram naquele tempo". Muito bem. Como eram as coisas, naquele tempo? Imagino que há no Brasil muitos septuagenários que se recordam de como era o Rio há 60 anos atrás: o problema é que esses senhores são uma gota no oceano onde o Ibope vai mergulhar sua proveta e avaliar os resultados. E possível reconstituir (com trabalho, pesquisa, discernimento) um visual de época, um fundo musical de época. Mas... alguém pode provar como era o jeito de ser das pessoas naquela época? Como falavam, como se comportavam no dia-a-dia, quais eram seus gestos, seus tiques, suas entonações de voz? Não dá para saber. O passado foi embora rapidinho e só deixou resíduos: fotos, textos...
Kananga está corretíssima na parte material; é no setor humano (enredo, diálogos, atores) que falta pegar o tom. Novela é conflito humano, e este só se verifica se os personagens forem verossímeis. O público quer captar no rosto do ator (e nas atitudes do personagem) aquela centelhazinha de verdade que põe o coração a bater mais forte. Senão, não há novela, e sim gente recitando falas e coreografando gestos.
O caso dos diálogos: novelas e filmes de época costumam dar a impressão de que o Brasil de 50 anos atrás era povoado por rui-barbosas. Todo mundo fala empolado, reproduzindo um "português de época" que é o da literatura - nunca o do meio da rua, porque a fala viva daquele tempo o vento levou. O ator não se sente á vontade com aquelas "falas por escrito", e isso acaba passando na tela. Mas quando um dos malandros da Kananga diz pro outro: "E por que que tu não ficou lá?", esse modo de falar pode, do ponto de vista histórico, ser incorreto - mas é dramaticamente verossímil.
O que vale para diálogo vale para enredo: não devemos ter a ilusão de que a vida naquele tempo era menos caótica, menos gratuita do que a de hoje. Não há nada de mais que os personagens ajam como gente, e não como personagens-dos-anos-30. Que os acontecimentos da narrativa sigam uma dinâmica interna, e não sejam a mera sombra de um "momento histórico", que enxergamos hoje, mas que não estava na cabeça de nenhuma pessoa daquele tempo. E que os atores se sintam à vontade para exprimirem sem remorsos suas emoções de 1989 - porque afinal de contas todo mundo é sempre a mesma coisa, basta a gente raspar os cacoetes da década, ou do século: a medula humana é sempre uma só.
Nos momentos em que isso acontece, Kananga flui fácil, e o espectador se liga mais na ação do que no efeito de luz ao fundo. Quando, porém, a ação dramática fica presa na camisa-de-força da "imitação de época", a novela se esvazia de substância e fica só a beleza - e aí ela pende mais para O Fundo do Coração de Coppola do que para o Cabaret de Bob Fosse - seu modelo declarado.
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Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 9835