A TELEVISÃO
E
O MUNDO DO TRABALHO
-
o poder de barganha do cidadão-telespectador -
João Luis
van Tilburg
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
NOTAS INTRODUTÓRIAS
1. COLOCAÇÃO DE UM PROBLEMA
2. MITOS TELEVISIVOS- IBOPE
- medição de opinião?
- um rito em família?
- falta de opção ou vício?
- programação merecida?
3. O MUNDO DO TRABALHO
- o cartão de ponto
- ritmo do trabalho
- o estado de saúde
- o hábito de preencher
- o tempo não-trabalhado
- o sistema de crédito
pessoal e o poder de compra
4. O MUNDO DO TELEVISOR
- o caráter cíclico da
programação da rede globo
- a codificação icônica
- o método de coleta de dados
- a análise dos dados
- dados complementares
- a telenovela
5. O TELESPECTADOR-CIDADÃO
6. OBSERVAÇÕES CONCLUSIVAS
MEUS AGRADECIMENTOS
às
centenas de trabalhadores que me relataram sua vida nos locais de trabalho;
às dezenas de famílias de baixa renda que me
receberam com toda a hospitalidade em suas casas para, ver juntos programas de
televisão;
a Ana Paula Perissé e Jane Cristina Morães Giglio
que colaboraram com paciência na "decoupagern icônica" das
telenovelas "Vale Tudo" e "Olho por Olho";
ao
revisor de meu texto;
ao
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que me
proporcionou tempo necessário para estudar e pesquisar.
APRESENTAÇAO
Quinze
anos de análise, observação, pesquisa e estudo sobre televisão me fizeram
escrever este livro, pois parece-me que os resultados destas atividades já
tenham sido amadurecidos o suficiente, o que permite sua publicação.
Quando,
em 1974, realizei um primeiro levantamento sobre o "padrão Globo" de
televisão, não era meu objetivo conhecê-lo. Salvo engano, naquela época ainda
não se conceituava a produção televisiva da Globo com este termo, embora Artur
da Távola deixasse escapar:
"Uma Rede como a Globo, por exemplo, não arrisca
colocar no ar um programa sem prévia seleção rigorosíssima. É o tal padrão de
qualidade, do qual, mui justamente, o jovem executivo se orgulha" [O
Globo: 20.06.74].
O
que queria saber eram as razões que levavam e ainda levam milhões de brasileiros
a se tornar, à noite, telespectadores assíduos, após um dia de trabalho
exaustivo. Isto porque sendo o sistema de televisão comercial, a audiência se
constitui numa "condição sine qua non" para o funcionamento deste
sistema televisivo. Não há empresário disposto a divulgar suas mercadorias ou
serviços numa emissora sem audiência.
Entretanto,
ao procurar estas razões, estudando, analisando e pesquisando programas
televisivos, como também observando famílias das camadas de baixa renda ao
assistirem à televisão, confrontei-me com este "padrão".
Hoje,
em 1990, tenho a sensação de que levantei tão somente um pouco do véu que — na
minha opinião — cobre o padrão global; existem ainda questões como, por
exemplo, a da racionalização na utilização do close. Explico-me. Em 1975 —
época de bipartidarismo, em que crescia o número de votos a favor do MDB —
analisei um diálogo na novela Escalada, de Lauro César Muniz, entre um
empresário na construção civil, Fachinni (Sérgio Brito), e um deputado federal
da situação, Alberto (Leonardo Vilar), no qual ficava explícito o habitual
investimento dos empresários na campanha dos "seus" candidatos. O
empresário cobrava dos "seus" deputados o lobby para pressionar o
Governo Federal na concessão de favores por ocasião da construção da nova
capital, Brasília. O diálogo que denunciava a situação passa-se num escritório,
em cena aberta. O tempo todo se vê, de dois ângulos opostos (planos e
contra-plano) quase panorâmicos, os dois personagens sentados. Em nenhum
momento, os personagens apareceram em close na tela do televisor, para
evidenciar, no rosto, as suas emoções ao expor questões políticas, o que, sem a
menor dúvida, foi a intenção do autor Lauro César Muniz. Esse diálogo foi
tratado, em termos de imagem, à distância, como se o diretor não quisesse
envolver os telespectadores. Em contrapartida, quando um casal de namorados
desta mesma novela estava conversando, os planos foram fechados e, para
acentuar, ou melhor formulado, para não dispersar a atenção do telespectador do
tema convencional da conversa (namoro), os rostos ficavam, muitas vezes, em
close. Parece-me que, ao utilizar, na novela, o close, procura-se subordinar a
aparente importância do tema dos diálogos à imagem que aparece no televisor.
Mas a questão da racionalização do close merece um estudo mais aprofundado,
para não se tirar conclusões apressadas. Neste instante não posso ir além dos
resultados que obtive.
Resta
ainda saber porque procurei as razões que fazem com que milhões de cidadãos de
camadas de baixa renda se tornem telespectadores, todas as noites.
Defendo
que, como não se acaba com a inflação por intermédio de um decreto-lei, tal
como o Plano Cruzado, também a televisão não se torna — digamos — melhor por um
simples ato de vontade. É imperativo conhecer as leis que fazem com que
tenhamos, no Brasil de hoje, um tipo de programação televisiva noturna que
todos conhecem, e não outro. Proponho-me a descobrir estas leis — ao menos
algumas — e, no meu entender, este objetivo será alcançado no momento em que se
conhecer os motivos que levam o cidadão brasileiro a se tornar um telespectador
assíduo após um dia exaustivo de trabalho, e se desvendar as razões que o levam
a dar preferência aos programas da Rede Globo.
Entretanto,
minha proposta de analisar a televisão no Brasil para ela se tornar melhor,
necessita ser mais especificada. Melhor em que aspecto?
Considero
que, num país como o Brasil de hoje, a televisão é o Meio de Comunicação de
Massa que tem mais condições de socializar o conhecimento. O televisor, pois,
dispensa o conhecimento da leitura para ter acesso a informações que, sem este
veículo, seria somente privilégio de poucos. Com esta afirmação, não desejo
desmerecer os esforços que deveriam ser empregados para cada cidadão dominar a
escrita e a leitura. Considero que teríamos já outro tipo de programação
televisiva, se o analfabetismo estivesse erradicado. Pois bem, quem já andou
pelas periferias dos centros urbanos, quem já visitou as zonas rurais as mais
distantes do eixo Rio — São Paulo, sabe que a transmissão simultânea de imagem
e som faz com que se tornem imediatamente acessíveis a todos fatos e
acontecimentos. Independentemente de religião, cor, sexo, convicção política e
nível escolar, a tecnologia eliminou os obstáculos impostos pela localização
física. Antes o rádio falava sobre outros países e outros regimes, e o ouvinte
dependia de conhecimentos prévios para poder visualizar, mediante a imagem
acústica, uma determinada concepção de um fato ou acontecimento. Lembro-me,
como se fosse hoje, na região amazônica, de um lavrador afirmar que "os
russos não podem ser subversivos, pois a Praça Vermelha — onde pousara o
tecoteco de um jovem alemão — é bonita demais". Não é sem razão que a
transmissão direta de Moscou, do espetáculo do Balé Bolshoi foi proibida, em
janeiro de 1976, em plena ditadura militar. A imagem de jovens "bailarinos
e bailarinas comunistas" é incompatível com determinadas concepções.
Aliás, já em 1961, quando a televisão transmitiu, ao vivo, do Teatro Municipal
de São Paulo, um balé apresentado por soviéticos, uma senhora da alta sociedade
— ao ser entrevistada durante o intervalo — mostrou seu espanto pelo belo
espetáculo: "Como é possível que uma ditadura possa cultivar arte!".
Se este fato de tempos longínquos não convencer para mostrar o potencial
democrático da televisão, talvez a greve geral de 14 e 15 de março de 1989
possa servir de argumento. Tanto o locutor do Jornal Nacional da Globo quanto o
Telejornal Brasil do SBT anunciaram o fracasso desta greve, enquanto as imagens
mostravam avenidas e ruas vazias, fábricas e lojas fechadas. Isto fez um
telespectador indignado escrever ao Jornal do Brasil:
"Ora, o país da Rede Globo e do Ministro da
Justiça não é o país real. Neste registrou-se a maior paralisação da
história" [JB 22.03.89].
Estes
"casos" evidentemente não podem ser interpretados como
representativos para a televisão brasileira. Por outro lado, contudo, são
indicações que apontam para uma televisão melhor, ou seja, para um tipo de
televisão que socializa o conhecimento. Por outro lado, entretanto, já deixei
entrever que a socialização do conhecimento mediante a televisão que resultaria
numa televisão melhor, não é apenas uma questão de conteúdo, como se este
melhor se limitasse a temas ou assuntos que deveriam compor os programas
televisivos, ou mesmo se este melhor se reduzisse a um a nova programação. Ao
falar da racionalização da utilização do close, já apontei para questões
relacionadas à imagem televisiva ou, melhor formulado, à codificação icônica
televisiva. Mostrei que o momento em que se "dá um close" não é algo
gratuito ou um "por acaso". Ao contrário, almeja-se obter um
determinado efeito. Não se pode perder de vista que a câmera guia o olhar do
telespectador. Este, pois, só vê o que a câmera mostra, e como a câmera mostra.
Esta constatação evidencia que uma televisão "melhor",
necessariamente, exige também um tratamento diferente da imagem. Quem agora
pensa que uma televisão "melhor" há de mostrar outros fatos ou outras
imagens, delimita, por demais, sua preocupação. Os quinze anos de estudo e
pesquisa da programação noturna da televisão fizeram me
descobrir a importância do tratamento da imagem para que a televisão se torne
melhor. E é isto que coloco, neste instante, à disposição de um público maior.
Rio
de Janeiro, 1990
NOTAS INTRODUTÓRIAS
Foi
o "New York Times" de 10 de dezembro de 1984 que informou ao seu
público: a Rede Globo é a "quarta maior televisão comercial do mundo,
depois das três redes norte-americanas" [O Globo 16.12.84].
Desta
forma consagrou-se, no Brasil, o lugar-comum: "a Rede Globo é uma das
melhores do mundo", como se a qualificação maior fosse sinônimo de melhor.
Além da premissa do sucesso das novelas da TV Globo no Brasil e no exterior, os
prêmios que ganhou são outras tantas evidências para sustentar o hoje
considerado "óbvio".
Por
outro lado, não estão claros os critérios que orientam a audiência televisiva a
preferir a TV Globo no Brasil e os que levam as comissões julgadoras a
conceder-lhe os prêmios Emmy e Príncipe de Astúrias.
É
exatamente a falta de clareza nos critérios que faz com que o lugar-comum se
torne, nas palavras de R. Barthes:
"uma arma do poder (que) repetindo,
despudoramente, certos temas, contribui para imprimir idéias, valores, álibis,
que acabam por funcionar, na cabeça do público, como uma verdadeira natureza
mental" [1987: 276].
Não
está claro, pois, por que a TV Globo goza da preferência da audiência nos dias
úteis, à noite, tendo até derrotado o programa noturno Sílvio Santos Diferente,
comandado, pessoalmente, por senhor Senhor Abravanel — o próprio — que, durante
anos consecutivos — nas tardes dominicais — era o "calcanhar de
Aquiles" da Globo. Não basta afirmar que as novelas da TV Globo têm boa
aceitação no exterior; a Manchete e a Bandeirantes também venderam novelas e
minisséries a Emissoras e Redes estrangeiras, mas uma vez que a TV Globo produz
mais novelas que as duas outras Redes, ao comercializá-las numa quantidade
maior se torna mais conhecida.
Não
é raro que o sucesso da Rede Globo de Televisão seja atribuído ao convênio
Time-Life, como já se pôde ler, em dezembro de 1976, na Revista Extra —
realidade brasileira. Este convênio até pode servir como hipótese para
responder à indagação sobre a preferência da população de baixa renda pela
programação noturna da TV Globo, nos dias úteis.
Para
encontrar uma resposta a esta questão, comecei a estudar, no início da década
de 70, a programação televisiva, apoiando-me em documentos colecionados de
jornais e revistas desde 1969, visto que não encontrava livros publicados sobre
a televisão brasileira, embora, neste mesmo ano, 43,1% do investimento
publicitário tenha sido aplicado neste veículo, para, aproximadamente, 4
milhões de televisores.
Não
nego a importância da contribuição de estudiosos estrangeiros para o
entendimento do fenômeno da Comunicação de Massa no Brasil e mais
especificamente da televisão.
Entretanto,
vista a diferença de clima, costumes e hábitos, além das particularidades do
capitalismo brasileiro, o quadro teórico para o entendimento deste fenômeno
necessita também uma referência, ao menos, sobre o que é diferente.
Já
naquela época, a novela formava a espinha dorsal da programação televisiva. Por
esta razão, procurei entender em que consistia o estereótipo da telenovela brasileira,
ou seja, almejei descobrir não tanto a característica da telenovela, mas
sobretudo aquilo que justificava a abordagem da temática com o objetivo de
detectar os mecanismos de envolvimento do telespectador e concluí: "A
função do estereótipo está na justificação do funcionamento da sociedade
(brasileira)" [1975: 516]. Isto, em 1973, ou seja, estávamos em pleno
"Milagre brasileiro", a época em que o 'slogan' "País
desenvolvido — País limpo" ocupava, pelo país afora, "outdoors"
e soava pelos rádios e televisores. O bicho-do-pé foi tirado, pela censura
federal, do pé do personagem Zeca Diabo da novela O Bem Amado, pois este
parasita não podia viver num país limpo. A minha dissertação de mestrado foi
além da análise do conteúdo de textos televisivos, tão em voga naquela época.
Comparei a codificação icônica de novelas, uma produzida pela TV Tupi, e outra
pela Rede Globo, com o intuito de descobrir o tratamento visual dado por estas
emissoras às novelas. Queria, pois, saber se existia uma diferença entre as
novelas destas duas emissoras no que diz respeito à imagem televisiva em
relação à defesa de valores. Naquela época já se falava do "padrão
global" para explicar a posição hegemônica da Rede Globo. Constatei que a
média de tomadas da novela da Globo era de S,1 segundos, e disto concluí:
"O esforço do ser hum ano — fisicamente cansado — para seguir o desenrolar
da história, está sendo substituído pelo tratamento visual da telenovela"
[1980: 58].
Naquela
época — 1975 — não consegui avaliar o real significado desta conclusão, até
saber o que afirma Michel Thiollent, ao tratar da questão metodológica de
pesquisas em televisão:
"Além da determinação de tempo disponível (para a
recuperação da força de trabalho), as condições materiais e sociais do trabalho
diário provocam tipos de cansaço físico e mental e interferem na exposição à
televisão e no contexto de receptividade (da mensagem televisiva)" [1982:
45].
A
partir daquele momento, comecei a verificar, de modo mais sistemático, como
trabalhadores do setor primário, secundário e terciário, de baixa renda,
assistiam, em família, à televisão. Verifiquei que estes telespectadores não
assistem calados aos programas de TV. Emitem opiniões, e não somente isto: conversa-se
enquanto se vê televisão, fazendo comentários sobre aquilo que se passa no
televisor, e, não raras vezes, uma cena de novela suscita discussão ou faz
lembrar a um dos espectadores algo que presenciou durante o dia.
Ao
mesmo tempo, pude constatar que a densidade de audiência, auferida pelo Ibope,
é somente um instrumento político utilizado pelas emissoras em defesa de um
determinado gosto, ou seja, não é por gostar de um programa que a população de
baixa renda se torna audiência. Não raras vezes escutei "hoje não tem nada
que preste". Mesmo assim, o televisor fica ligado, e a família na frente
dele.
Procuro
explicar este fenômeno.
Recorro
ao meu arquivo de jornais e revistas, iniciado em 1969 e que contém, hoje,
aproximadamente 18.000 documentos, para sustentar minha argumentação.
Retomo
pesquisas realizadas e complemento-as.
Ao
mesmo tempo, desejo contribuir para desfazer alguns mitos sobre a televisão e
temas adjacentes.
Considero
da maior importância demorar-me em questões metodológicas, pois as conclusões
às quais cheguei, somente têm validade a partir da compreensão metodológica.
1. COLOCAÇÃO DE UM PROBLEMA
Já
em 1983, o SBT publicou, no Jornal do Brasil, a seguinte comunicação:
"Nossa linguagem simples e franca está chegando a
95 milhões de brasileiros. Quase 14 milhões de domicílios com TV, ou 91% do
total do Brasil recebem a nossa imagem" [JB 01.05.83].
Dados
apresentados pela revista "Imprensa" revelam que, em 1987, a Rede Globo
de Televisão cobria 4.173 municípios, o que equivale a mais de 21 milhões de
domicílios com televisor, ou seja, 99,93% [nº 20: 92].
Nesses
domicílios moram aproximadamente 80% dos assalariados que ganham entre 0,5 e 3
salários mínimos. Citando o DIEESE — Departamento Intersindical de Estudos
Sócio Econômicos — o Jornal do Brasil informa que, em outubro de 1988, este
salário mínimo, incluindo o valor do décimo terceiro, é 75,4% menor do que em
1940 [27.11.88]. É pertinente ressaltar, neste contexto, que desde 1970, à
medida que crescia o número de lares com televisor, o valor do salário mínimo
diminuía.
Os
investimentos publicitários em televisão, neste mesmo ano de 1988, atingem,
conforme a revista "Mídia & Mercado", quase um bilhão e quinze
milhões de dólares [n° 01: 89]. Isto significaria, em média, um pouco mais de
54 dólares por lar com televisor. Esta média matemática é, evidentemente,
falsa, pois as camadas sociais que têm renda entre meio e três salários
mínimos, não contribuem, mediante o consumo de mercadorias e serviços
anunciados no seu televisor, de forma proporcional, em termos do valor
investido na publicidade. Em outras palavras, a grande maioria da população
brasileira assiste à televisão — aparentemente — quase de graça.
Mesmo
sendo janeiro um dos meses mais fracos em termos de venda, e, por esta razão,
de publicidade, e considerando ainda que a economia corria o perigo de cair no
colapso da hiperinflação, o faturamento bruto em publicidade, no mês de janeiro
de 1989, ultrapassou a quantia de 46 milhões de dólares [Meio & Mensagem:
26.07.89].
Se
a absoluta maioria da audiência televisiva não justifica o investimento
publicitário por não garantir seu retorno, devido ao baixo grau de renda e de
consumo, indaga-se que razões acirram a disputa pela audiência.
Questiona-se,
portanto, que tipo de televisão comercial é este; pois, sendo as categorias de
renda alta o público predileto para o escoamento das mercadorias
industrializadas, o tão falado nível dos programas televisivos poderia ultrapassar
os limites que caracterizam o gasto médio.
Na
sua contribuição no estudo "Um país no ar", Inimá F. Simões formula
esta indagação de outra forma: "que interesse representa o cidadão que
mora no interior das Alagoas?" [1986: 91].
A
autora considera este telespectador no mínimo um penetra sem grande importância
para o mercado publicitário que sustenta as Redes de Televisão.
Há
entretanto outras opiniões. O publicitário Hugo Weiss relata, em 1975, quando
havia apenas 10 milhões de televisores:
"No interior do Ceará a população usava sandálias
feitas com pedaços de pneus de caminhão, que protegiam bem o pé e duravam uma
eternidade; mas aí o Chico Anísio, que é cearense, passou a fazer propaganda
das sandálias Havaianas, que não duram nada, nem protegem os pés e deixam um
cheiro discutível, mas as sandálias Havaianas davam status, e as outras,
melhores, acabaram" [1976: 219].
Em
1982, o presidente da CBBA-Rio, Jomar Pereira da Silva, referindo-se aos
moradores das favelas cariocas que representam 32% da população do município,
observa:"
Essa massa fantástica vive, come, bebe, consome.
Estimulados pela aspiração natural (sic) de ascensão social e facilitados pelos
sistemas de crédito compra (sic) (...) Sonhos ou pesadelos à parte, o mercado
dos pobres já é encarado com seriedade por diversas empresas brasileiras e
multinacionais, que dele estão extraindo parte dos seus lucros" [O Globo:
03.10.82].
Uma
pesquisa realizada em 1984 sobre o consumidor de baixa renda, revelou:
"que aproximadamente 80% da população
economicamente ativa (calculada em 43.756 milhões de pessoas) se enquadra como
consumidor de baixa renda (até três salários mínimos). (...) A pesquisa
levantou também o valor de renda mensal total disponível todo final de mês de
alguns segmentos desse mercado de baixa renda: consumidores urbanos: Cr$ 1,28
trilhão (aproximadamente U$ 1 bilhão)" [Revista Indústria e Produtividade,
1984: 18].
Ainda
é importante ressalvar que as peças publicitárias não obtêm o impacto que o senso
comum lhes atribui. Isto comprova a agência de publicidade SSC e Lintas
Worldwide que - para realizar uma pesquisa cujos resultados foram publicados,
em parte, pelo jornal do Brasil sob o título "Telespectador só percebe um
terço dos anúncios da TV":
"alugou uma casa em São Paulo e mandou instalar
nela 25 telefones: 24 eram usados pelos entrevistadores contratados e um servia
para que o entrevistado confirmasse estar participando mesmo de uma pesquisa.
Era a operação 'Olho na TV'. Durante três semanas foram constatadas 10 mil 639
residências em São Paulo, ou seja, 1 em cada 60 casas com telefone da cidade.
Foram realizadas 3 mil 785 entrevistas, porque 2 mil 541 pessoas constatadas
recusaram-se a colaborar e 4 mil 313 ligações foram inúteis: as pessoas não
estavam com o televisor sintonizado em alguma das emissoras pesquisadas ou não
havia na casa telespectadores com mais de 18 anos de idade. Foram pesquisados 3
mil 596 intervalos comerciais da TVS (canal 4), TV Globo (canal 5), TV Record
(canal 7) e TV Bandeirantes (canal 13) entre 24 de maio e 11 de junho de 1982.
(...) Em média, apenas 30% dos telespectadores entrevistados ficaram atentos à
TV, entre os que permaneceram na sala durante os intervalos comerciais: 55%
dividiram a atenção entre a TV e outras atividades e 14% dedicaram-se apenas a
outras atividades, enquanto 1% teve uma situação indefinida" [JB
01.07.83].
Entretanto,
o mercado consumidor de um país como o Brasil possui ainda características
mercadológicas periféricas, que poderiam ser classificadas como merchandising
com efeito indireto, que provavelmente funciona de modo mais eficiente que a
própria mensagem publicitária.
Um
gênero deste tipo de merchandising pode ser observado ao se sair das capitais e
dos grandes centros urbanos, para as cidades interioranas, onde sobretudo a
telenovela faz florescer uma indústria de confecções que imita a moda em uso no
eixo Rio-São Paulo. Utilizando como chamariz fotografias, sobretudo das
principais estrelas de novela, encontradas em revistas como "Capricho"
e "Amiga — TV Tudo", as boutiques e armarinhos destas cidades
abastecem o mercado de baixa renda. Embora o corte, geralmente mal feito,
evidencie a imitação, e a matéria-prima empregada seja de qualidade inferior, o
consumo é considerável e garante, desta forma, a produção da indústria têxtil.
Um
outro tipo de "merchandising com efeito indireto" com a mesma
característica, embora de um outro gênero, consiste na desapropriação indevida
de eletrodomésticos, tais como liquidificadores e máquinas fotográficas,
incluindo aparelhos de som e televisores a cores, dos quais há um mercado em
favelas e cidades-dormitórios que não aparece, mas funciona com mecanismos
próprios.
Sendo
inacessíveis para uma grande parcela da população trabalhadora de baixa renda,
estes eletrodomésticos podem ser adquiridos por preços irrisórios por
intermédio de bem-organizados grupos que os obtêm mediante a
"desapropriação indevida" efetuada nos domicílios da classe média.
Chega-se, às vezes, a uma sofisticação tal que o tipo e a marca de um aparelho
podem ser encomendados. Como efeito deste mercado paralelo e atuante, os
antigos donos destes eletrodomésticos, não querendo abrir mão do conforto por
estes proporcionado, são obrigados a comprá-los, outra vez, no mercado legal.
É
evidente que a indústria de eletrodomésticos só ganha com este mecanismo de
consumo.
Sob
o título "O mercado das favelas", o jornal O Globo noticia:
"Pesquisa feita nas favelas cariocas mostrou que
em cinco por cento dos barracos há dois aparelhos de TV — um a cores, outro em
preto e branco. Outra constatação: 20 por cento dos favelados usam cremes para
a pele. Os pesquisadores ficaram boquiabertos (sic) com as marcas de produtos
de limpeza e certos tipos de alimentos sofisticados que são consumidos nas favelas
do Rio" [O Globo 14.08.83].
Estes
dois tipos de merchandising com efeito indireto garantem a produção e, por via
da lógica, o lucro das empresas do ramo. Contribuem, de forma direta, para a
acumulação do capital, e satisfazem, ao mesmo tempo, o que o publicitário acima
citado denominou de "aspiração natural" da população de baixa renda.
Por ser natural a aspiração de ascensão social simbolizada por um tipo de
consumo, esta é inerente ao ser humano. Para completar este raciocínio, vale
citar Edmund Leach:
"Todos os que vivem numa mesma comunidade, não só
trabalham em conjunto, como também comunicam entre si e partilham conceitos (e
preconceitos) comuns. Os vários tipos de atividade que podem ser distinguidos
como aspectos diversos do comportamento humano (...) estão todos
interligados" [1985: 63].
Portanto,
se grande parte dos brasileiros assiste ao desfile dos objetos que compõem o
"Brasil desenvolvido", por que não podem aqueles de baixa renda
aspirar a obtê-los, não importa através de que meios, visto que esta aspiração
é considerada "natural" e não cultural?
Nesta
perspectiva "o cidadão que mora no interior das Alagoas" — na
formulação de Inimá F. Simões — faz parte integrante da televisão comercial
brasileira. Torna-se também compreensível a afirmação de José Ulisses Alvares
Acre — de sua iniciativa é o Jornal Nacional da Rede Globo:
A televisão, nestes 25 anos, por sua simples
existência, prestou um grande serviço à economia brasileira: integrar
consumidores potenciais ou não, numa economia de mercado" [1976: 66].
Esta
integração econômica é impensável sem uma infra-estrutura de telecomunicações
adequada, já prevista pelo Código Nacional de Telecomunicações de 1962. Sua
implantação cabe ao Conselho Nacional de Telecomunicações (CONTEL) que criou
para este fim, em 1965, a Embratel, empresa responsável pelo Sistema Nacional
de Televisão formado por troncos e redes.
Por
outro lado, sendo uma concessão, a exploração comercial de canais de Televisão
— concomitantemente das redes — há de se obedecer as normas estabelecidas pelo
Estado, já elaboradas pelo Código de Telecomunicações de 1962. Em outras
palavras, antes da econômica, a integração politica, mediante a televisão, já
fora pensada no início da década de 60. Uma vez pronta a infra-estrutura material,
coube ao General Médici, em 1970, criar o Plano de Integração Nacional
(P.I.N.). Assim, "o cidadão que mora no interior das Alagoas" — para
usar mais uma vez a expressão de Inimá F. Simões — não pode ser considerado um
penetra. Documentos jornalísticos da época em que foi implantado o P.I.N., não
deixam dúvida. Assim, por exemplo, observa Valério Andrade, colunista de
televisão do Jornal do Brasil:
"Desde que a TV deslocou- se do seu eixo original
(Rio — São Paulo), propagando-se por diversos estados, é evidente que as
emissoras-chave têm de ver a integração nacional como meta e não como mero
acidente via Embratel. A fórmula que serve de sustentação para Alô Brasil,
Aquele Abraço (Canal 4) mostra-se funcional em relação ao objetivo visado acima"
[JB 08.05.70].
Dentro
da perspectiva de integração nacional, o sistema comercial de televisão poderá
ter ainda um outro desdobramento, sobretudo ao constatar que o Estado durante
muitos anos foi um dos seus maiores clientes.
A
relação dos maiores anunciantes nas emissoras de televisão no Rio e em São
Paulo, segundo estudo feito pela LEDA, referente ao mês de agosto de 1976,
mostra que o Governo Federal ocupa nas duas praças o primeiro lugar,
respectivamente 47% e 36,5% do total dos valores investidos em publicidade e
propaganda [O Globo: 10.10.76].
Este
desdobramento encontra sua explicação na necessidade do controle ideológico que
somente pode ser exercido, em parte, pelas classes dominantes mediante o
investimento em publicidade para garantirem, ao mesmo tempo, o escoamento da
sua produção, possibilitando desta forma a produção simbólica televisiva. Pois,
visto que o poder aquisitivo da grande maioria da população ativa que compõe a
audiência televisiva, não é suficiente para garantir o retorno do capital investido
na produção e divulgação das peças publicitárias, o Estado se vê obrigado a
assumir uma grande parcela dos custos para manter o sistema comercial da
televisão brasileira. Talvez seja permitido afirmar que as Redes de Televisão,
como tantos outros setores denominados produtivos, são subsidiadas!
Ora,
todas estas considerações e argumentos explicam somente as razões que levaram o
Estado e os empresários a manter o tipo de sistema de televisão comercial que
conhecemos hoje. Poderia ser um outro tipo. Contudo, estas considerações e
argumentos não respondem às indagações anteriormente colocadas: Por que o
cidadão brasileiro assiste à televisão, e por que este cidadão dá preferência à
programação da Rede Globo de Televisão?
Por
esta razão impõe-se a verificação dos motivos que levam a população brasileira,
morando nos centros urbanos , a se tornar telespectadora assídua, todas as
noites. Antes mesmo de procurar qualquer outra explicação do fenômeno
televisivo brasileiro, parece-me, que, em termos metodológicos, o caminho mais
indicado é examinar o que o senso comum afirma em relação a esta indagação.
2. MITOS TELEVISIVOS
É
do conhecimento público que a Rede Globo de Televisão, à noite, detém, nos
grandes centros urbanos, nos quais o telespectador tem a opção de escolha entre
seis programações televisivas, uma audiência superior, na maioria das vezes, à
soma das demais Redes de Televisão — considerando somente os televisores
ligados — como demonstra o quadro a seguir:
quadro I
os dez programas mais vistos
1971 |
1979 |
1989 |
77% Irmãos Coragem |
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68% |
Marron Glacê |
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65% |
Jornal Nacional |
|
|
Os Gigantes |
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63% Jornal Nacional |
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|
62% |
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O Salvador da Pátria |
60% |
Panteras |
|
59% |
|
Jornal Nacional |
58 |
Cabocla |
|
|
Planeta dos Homens |
|
57% |
Chico City |
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Mulher 80 |
|
56 |
Alerta Geral |
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54% Alô Brasil, Aquele Abraço |
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TV - 2ª Edição SP |
Balança Mas Não Cai |
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A Próxima Atração |
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53% Discoteca do Chacrinha |
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51% Assim na Terra como no Céu |
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48% Som Livre de Exportação |
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43% Faça Humor Não Faça Guerra |
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42% Café Sem Concerto (Tupi) |
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Os Trapalhões |
39% |
|
Globo de Ouro |
38% |
|
Pacto de Sangue |
37% |
|
Fantástico |
36% |
|
Globo Repórter |
|
|
Sinal Verde -F 1 (*) |
Fonte: O Globo 27.03.71 |
JB 04.11.79 |
Folha SP 11.06.89 |
(*) Mesmo não tendo mais, em 1989, uma audiência
hegemônica como na década de 70, é pertinente observar que a audiência de Sinal
Verde — Fórmula 1, o programa da Rede Globo colocado no 10 lugar, contava com
1.405.000 telespectadores contra 1.339.000 telespectadores para Porta da
Esperança, o programa mais visto do SBT e que, por esta razão, não consta no
quadro.
Esta
hegemonia quantitativa raramente sofre abalos, a não ser por ocasião de
modificações no ritmo da vida cotidiana, que resulta em uma programação
televisiva noturna atípica, ou — o que acontece raramente — quando um programa
global não apresenta atração seja por seu texto, seja pela falta de qualidade
profissional dos seus atores, como ocorreu com o seriado Tarcísio & Glória.
Sob o título "índices de Sucesso", o Jornal do Brasil comprova o
relativo fracasso deste seriado:
"Nos últimos meses, de olho nos indicativos, a
Globo tem multiplicado aflitas tentativas para neutralizar o adversário. (...)
No dia 9 de junho, finalmente, enquanto Tarcísio Meira e Glória Menezes suavam
para escalar até os 26 pontos, em São Paulo, A praça é nossa, ela própria
incrédula, espetava sua bandeira nos 44. Na última quinta feira, as esperanças
globais dependiam de Boi Santo, caso especial de Dias Gomes pronto há meses e
tirado às pressas da prateleira" [JB 09.07.88].
Parece-me
que, para obter uma resposta à indagação que explica não somente a densidade da
audiência televisiva noturna formada sobretudo pela população de baixa renda,
mas também a preferência dada por esta população à Rede Globo de Televisão nos
grandes centros urbanos, metodologicamente se impõe partir de uma programação
noturna atípica. Isto porque é necessário saber a razão que leva alguém a se
tornar telespectador.
Em
virtude da característica técnica ter imagem para ser vista, o televisor
absorve a audiência de tal maneira, que ao ver um programa televisivo, outras
atividades, sejam lúdicas ou não, na grande maioria dos casos, são
incompatíveis com esta. A dona-de-casa, o motorista de ônibus, uma datilógrafa,
podem executar suas atividades profissionais escutando rádio. O mesmo vale para
atividades lúdicas. É evidente que a leitura de um jornal ou revista é
incompatível com qualquer outra atividade; entretanto, a hora da leitura é
determinada pela vontade do leitor. O telespectador, ao contrário, não escolhe
o momento para assistir a um programa televisivo da sua preferência; a hora da
transmissão deste programa o obriga a interromper outra atividade.
Nesta
perspectiva, a atividade ver televisão, além de ser totalmente absorvente,
contém outra característica: hora marcada. É por esta razão que uma programação
televisiva atípica poderá evidenciar o motivo que leva alguém a se tornar
telespectador de um programa e não de uma programação. Pois, por ser atípica, a
composição desta programação interrompe o ciclo conhecido de programas que se
sucedem um a outro, o que possibilita ao telespectador procurar algo que lhe
agrade mais. Em outras palavras, uma programação atípica possibilita, ao menos
em tese, verificar se a audiência vê televisão ou assiste a programas.
Ao
assistir a um programa — observa Patrick Besenval — o telespectador age da
mesma forma que ao escolher um livro, um filme ou um jornal. Contentando-se em
escolher uma programação, o espectador não se importa, pelo menos em tese, com
aquilo que vai ver; permite que sua preferência na atividade ver televisão seja
determinada por aquilo que a emissora acha por bem transmitir. Mudando de
canal, é ele que define a sua preferência, ou seja, começa a assistir à
televisão.
No
que diz respeito à programação televisiva noturna, a semana de carnaval é
atípica em virtude das transmissões ao vivo dos desfiles das Escolas de Samba,
na Marquês de Sapucaí, e dos bailes nos grandes clubes. O formato do programa
transmissão ao vivo do 1° Grupo, por exemplo, é determinado pelo tempo que as
Escolas de Samba necessitam para chegar na Praça da Apoteose. Embora exista o
critério cronometragem que conta na obtenção de pontos para indicar a Escola
vitoriosa, este, entretanto, é muito frágil, pois a quebra de um carro
alegórico, ou mesmo um tiroteio, são razões para uma Escola adiar sua entrada
no Sambódromo. Em outras palavras, a televisão perde sua independência na
determinação do elemento tempo para fazer sua programação e este elemento é de
extrema importância para uma emissora garantir sua audiência. Assim, quando há
uma transmissão exclusiva, ao vivo, de um jogo de Futebol, a emissora de TV tem
poder de barganha suficiente para determinar a hora em que o espetáculo se
inicia.
"As emissoras de televisão (...) compram os
direitos de transmissão depois de assegurar a venda de um pacote de
patrocinadores. Pagam alto, e, por isso, determinam o horário dos jogos — no
Brasil, em dias de semana, tem de ser depois das novelas" [JB 30.06.87].
É
evidente que no exercício do poder de barganha uma Rede de Televisão deve poder
contar com a fragilidade das estruturas!
"O horário dos jogos de futebol sul-americano
nunca foram, nem podem ser levados (sic) a sério. Sobretudo, quando os
interesses comerciais se sobrepõem à vontade dos organizadores, programas e
regulamentos podem ser mudados a qualquer momento.(...) O jogo entre Brasil e
Argentina, programado inicialmente para às 20 horas — 21 horas de Brasília —
passou para 22 horas, e Bolívia x Colômbia previsto para 22 horas, passou a ser
preliminar, iniciando-se às 20 horas. A inversão foi anunciada na manhã de
ontem pela Federação Boliviana, sem nenhuma explicação. Soube-se, porém, que
atendia às exigências da TV Globo" [JB 30.04.87].
O
horário do espetáculo carnavalesco é estabelecido por motivos de ordem
turística e de tradição. A programação televisiva noturna atípica, por isso,
cria para as Redes de Televisão, menos sintonizadas, uma oportunidade de
mostrar ao público que, eventualmente, se acostumou a ver a programação de uma
Rede em vez de assistir a programas das várias Redes, sua existência. É este o
motivo principal que levou, em 1987, a Rede Manchete a elaborar uma programação
preparatória de Carnaval, além do investimento de grandes som as na cobertura
deste evento que possibilita uma programação atípica. A política de uma
programação atípica, pois, não se restringe somente aos dias em que um evento
ocorre:
A TV Manchete arma seu equipamento e prepara seus
profissionais há seis meses a sua cobertura mais importante (sic). Estreou seu
carnaval em dezembro com o programa Esquentando os Tamborins, com os
comentários de Haroldo Costa. Depois, veio o Festival de Músicas de Carnaval
até começar, na sexta-feira passada, a transmissão ao vivo, e com
exclusividade, do primeiro dos 29 bailes desta cidade" [JB 22.02.87].
Também
é evidente que, na criação de uma programação atípica, interesses financeiros
envolvidos abrangem grandes somas:
Chega a um pouco mais de Cz$ 7 milhões (aprox. 600.000
BTN) o total que será pago pelas televisões pelos direitos de transmissão do
desfile das escolas de samba no próximo carnaval. O contrato, assinado na
quinta-feira com a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro,
tem até agora como signatários apenas as TVs Globo e Manchete" [JB
14.12.86].
A
luta pela audiência por ocasião do Carnaval — também chamada a guerra dos
logotipos — não deixa a menor dúvida de que a Rede Manchete deseja marcar
presença nos televisores, ou seja, seu objetivo principal é levar o público
telespectador a assistir programas e não a ver uma programação. Esta luta pela
audiência é, às vezes, marcada por lances curiosos:
"Como todos os anos, a Manchete se manteve
imbatível na guerra dos logotipos gigantescos, iluminados este ano por néon no
início dos desfiles. No domingo, a Manchete usou um ado, nome técnico do
recurso eletrônico que cobriu o logotipo global com um selo de seu Carnaval nas
Estrelas. A Globo chegou a mudar o ângulo de sua cobertura no desfile da
Caprichosos de Pilares (a quarta a desfilar no domingo) mas teve de conviver
com o 'M' em néon vermelho da Manchete sujando sua imagem até a manhã de
terça-feira" [JB 04.03.87].
IBOPE
— MEDIÇÃO DE OPINIÃO?
O IBOPE
(Instituto Brasileiro de Opinião Pública) atesta que esta estratégia da
Manchete, pelo menos por ocasião de uma programação atípica, leva a resultados
até inesperados. Os resultados da pesquisa de audiência realizada pelo IBOPE,
por ocasião do Carnaval 87, revelam os seguintes dados:
"Na segunda-feira, o telespectador parece mais
decidido a pegar a onda da Manchete. Às l9h30m., a Globo obtém 77% da
audiência, contra 7% da Manchete. Este índice global cai para 64% às 20hs.
contra 14% da Manchete. No horário de Roda de Fogo, recupera a audiência com
74% contra 9% da Manchete. Mas, a partir das 21hs. seus índices começam a
despencar para 45% contra 39% às 21h30m., e chegam a 33% às 22h. contra 53% da
Manchete, neste momento líder da audiência carioca com 21% de vantagem em
relação à Globo até 1h30m. de terça-feira. Na alta madrugada, a vantagem da
Manchete cai" [JB 05.03.87].
Convém,
contudo, observar que o IBOPE não se responsabiliza pela qualidade do
espetáculo, conforme José Perigault, então diretor executivo do IBOPE, afirma
em 1973:
"Na verdade, o IBOPE só constata a preferência
popular, da qual é termômetro. Mas o que escraviza emissoras e agências, em
última análise, é mesmo o público. É em função do gosto popular que são feitas
as programações" [JB 21.03.73].
Com
esta afirmação está criada a controvérsia evidenciada pelo título do artigo
escrito, em 1971, por Carlos A. Dunshee de Abranches, "A Ditadura dos
IBOPES". Ele afirma:
"Até hoje a televisão brasileira tem vivido em
função da propaganda, de forma que o patrocinador representa a força decisiva
no planejamento, elaboração e execução dos programas. Como corolário, a
qualidade e o êxito dos programas são medidos apenas por critérios de
audiência. Em linguagem mais simples: bom e lucrativo é exclusivamente o que dá
IBOPE. Como o patrocinador é um empresário, que, na maioria dos casos, quer
legitimamente vender os seus produtos ou serviços, a ele interessa anunciar nos
programas que atraem maior número de telespectadores" [JB 08.09.71].
Tanto
a opinião de José Perigault quanto a crítica que lhe é feita por Carlos A.
Dunshee de Abranches não explicam, entretanto, por que os cidadãos brasileiros
se tornaram telespectadores, como também nem um nem outro pode afirmar em sã
consciência que o cidadão brasileiro gosta do que assiste ou vê no seu
televisor. Presume-se!
Pois
mesmo admitindo que um dado quantitativo em determinadas circunstâncias pode
obter um significado qualitativo, em nenhum momento a pesquisa do IBOPE
solicita que o telespectador opine sobre o programa que está sendo transmitido
no momento da formulação da pergunta: qual o canal a que está assistindo? Em
outras palavras, a resposta dada é algo exterior à opinião do telespectador.
Por
conseguinte, a preferência dada a uma programação atípica não evidencia a razão
que leva uma pessoa a interromper uma atividade para se tornar expectador e
isto porque o resultado detectado pelo IBOPE é resultante da quantificação de
sentimentos, o que, no máximo, pode demonstrar o melhor entre os melhores, ou o
menos chato entre os piores. Em outras palavras, a quantificação de sentimentos
— não de opiniões — não permite uma avaliação do programa propriamente dito, e,
por via da lógica, explicitar a razão que levou um telespectador a mudar de
canal.
UM
RITO EM FAMÍLIA?
Também
pesquisas realizadas sobre a interpretação de programas televisivos não
evidenciam as razões que levam o cidadão a se tornar telespectador. Parte-se do
pressuposto de que o programa ou a programação que gozam da preferência
satisfazem necessidades, seja de informação, seja de entretenimento. Carlos
Eduardo Lins da Silva afirma:
"De um modo geral, a televisão é vista como uma
coisa boa pelas comunidades. E o principal motivo para essa atitude simpática é
o fato da TV ser considerada um objeto útil e uma fonte de diversão e
entretenimento importante" [1985: 82].
Ondina
Fachel Leal registra que a alta classe média intelectualizada liga o televisor
"por causa da empregada e a gente acaba acompanhando também", ou
porque "é bom prestar atenção no que está acontecendo na TV
brasileira" [1986: 43]. Entretanto, referindo-se ao local do televisor na
casa de uma família de baixa renda, a autora observa: "O fato de se ter
acidentalmente acompanhado a mudança de local do aparelho de televisão evidenciou
que todos aqueles objetos e o lugar dos objetos não são gratuitos" [1986:
35].
Num
debate sobre "Televisão e Populações desfavorecidas", Mundicarmo
Maria Ferreti relatou que os moradores da Vila Anjo da Guarda, um dos bairros mais
pobres de São Luiz - MA, antes de qualquer outra dívida, pagam a conta da luz
para não perder a telenovela.
É
evidente que este tipo de comportamento — utilizando a expressão de Ondina
Fachel Leal — não é gratuíto, ou seja, ver ou assistir a televisão constitui-se
quase uma primeira necessidade, algo que vai além do simples gostar. Ondina
Fachel Leal afirma ainda:
"A hora da novela é um momento de reunião das
pessoas que se repete ritualisticamente todos os dias. (...) A noção de ritual
é aqui a que melhor define a prática regular da reunião de pessoas, onde cada
um ocupa um lugar determinado (...)" [1986: 48].
Num
estudo realizado por Yvonne Alves que procura "(...) descrever,
etnograficamente, os modos de cada família assistir à novela e se comportar
diante dela" [1981: 03], evidencia-se a ocupação de lugares na sala
conforme critérios hierárquicos, quando uma família assiste à televisão:
"Descreverei esse ritual a partir das descrições
feitas pelos dois grupos de alunos de suas famílias. Embora haja algumas
diferenças entre os dois grupos, principalmente no tipo de casa e disposição do
aparelho de TV, as semelhanças são impressionantes. A novela é vista na grande
maioria das famílias e principalmente por mulheres. Alguns homens a vêem e em
90% dos casos têm um lugar especialmente reservado, uma poltrona ou a parte
mais confortável do sofá" [1981:11].
Mas
mesmo denominando de rito a reunião de pessoas numa hora prefixada para ver ou
assistir à televisão, os estudos citados, não respondem à indagação por que as
pessoas ligam seu televisor, embora não haja como negar que a reunião em
família numa hora prefixada possa assumir características de rito.
FALTA
DE OPÇÃO OU VÍCIO?
Eventualmente
é legítimo afirmar que a falta de opção para se entreter obriga o trabalhador
de baixa renda a se tornar telespectador. Parece-me, entretanto, uma resposta
simples demais para poder explicar, por exemplo, a total ausência de novelas
aos domingos, enquanto em todos os dias úteis pelo menos nove novelas estão no
ar, no Rio de Janeiro. Pois quem assiste à novela por falta de opção não deixa
de preferi-la nos domingos também, tal como acontece nos feriados civis e
religiosos. E, para quem não tem opção de entreter-se, à noite, nos dias úteis,
quem a garante nos domingos à noite?
A
importância da telenovela na estrutura da programação televisiva como um todo,
para garantir audiência, aparece com clareza no quadro que segue:
quadro II setembro de 1987
13.00
— 13.30: Sítio do Pica-Pau Amarelo — TVE;
13.25
— 14.20: Vereda Tropical — TV Globo;
14.30
— 15.30: Uma esperança no ar — SBT;
15.30 — 16.30: Cristina
Bazan — SBT;
17.55
— 18.50: Bambolê — TV Globo;
18.50
— 19.40: Brega e Chique — TV Globo;
19.30
— 20.20: Helena — TV Manchete;
20.30
— 21.25: O Outro — TV Globo;
21.20 — 22.20: Corpo Santo — TV Manchete.
Os
dados contidos neste quadro evidenciam que a partir das 18 até às 23h20m. —
horário noturno — está no ar uma programação composta de novelas, o que
comprova a importância da telenovela na estrutura de qualquer programação
televisiva para garantir uma audiência.
Além
da falta de opção, também o vício pela programação da Rede Globo de Televisão
pode ser mencionado para explicar a grande densidade de audiência. Entretanto a
explicação de que o padrão global vicia os telespectadores não torna
inteligível o slogan da Rede Globo de Televisão, há alguns anos, ao divulgar
sua programação por ocasião do Carnaval: "A mesma programação e o melhor
do Carnaval". Quem não gosta de Carnaval sai prejudicado, e os foliões
também, porque perderam suas novelas que exatamente naqueles dias revelam
intrigas costuradas com muita audácia e suspense no decorrer de capítulos
anteriores.
É
pertinente retomar, ainda, a questão dos índices de audiência apontados pelo
IBOPE, pois estes são publicados em jornais e revistas ao alcance do grande
público, além do fato de que jornais e revistas em colunas próprias, comentam
favorável ou desfavoravelmente programas televisivos, ou seja, em circulação
estão apreciações quantitativas e qualitativas. Esta prática não deixa de ser
uma espécie de merchandising indireto.
Não
raras vezes este tipo de merchandising se caracteriza por peculiaridades, como
demonstra uma notícia da "Coluna do Zózimo" no Jornal do Brasil:
"Somavam mais de 200 pessoas os convidados que
compareceram à recepção oferecida anteontem em Brasília pelo Chanceler e Sra
Azeredo Da Silveira em homenagem ao casal Henry Kissinger. Formavam os vários
grupos de conversa diplomatas, altos funcionários, militares e parlamentares,
cujas mulheres acabaram preferindo Francisco Cuoco ao homenageado, pois de
repente abandonaram a festa, reunindo-se numa saleta vizinha ao 'living', para
acompanhar mais um capítulo da novela O Astro" [JB 29.09.78].
Esta
prática de merchandising indireto pode levar alguém a verificar, ele mesmo, no
seu televisor, a validade expressa no resultado numérico ou na crítica
especializada, tal como acontece com as cotações avaliativas que acompanham,
nos jornais diários, a programação cinematográfica. Neste caso, alguém se torna
telespectador por uma razão explícita: deseja conferir uma opinião emitida.
Entretanto, antes deste novo telespectador, milhares ou milhões de outros já
existiam sem termos explicitado a razão para tal fenômeno.
PROGRAMAÇÃO
MERECIDA?
É
legítimo, decerto, também apelar para o ditado cada país tem a televisão que
merece, sugerindo-se que a programação televisiva vem ao encontro do nível
cultural, sócio, econômico e político de uma nação.
De
certo, este ditado não é aceito por todos. Assim, Augusto Costa, dirigente da
ANURT (Associação Nacional de Usuários de Rádio e Televisão) discorda:
"Acho que o brasileiro não tem a televisão que
merece. Temos passagens heróicas em nossa história; tivemos um Osvaldo Cruz que
ninguém conhece. Agora, qualquer criança brasileira sabe tudo sobre a conquista
do Oeste Americano, tudo sobre os 'Kid's' assassinos dos Estados Unidos e nada
sobre os 'Josés'" [JB 03.07.82].
No
caso da validade do ditado 'Cada pais tem a televisão que merece', deve-se
encontrar uma explicação para algumas constatações como, por exemplo, o
aparecimento de uma audiência estrondosa por ocasião da novela Roque Santeiro,
que alterou datas de lançamento de filmes e horários de teatro, e que provocou
a escassez de táxis às 21.15hs. — um fenômeno, aliás, não novo na história da
televisão brasileira. A novela Selva de Pedra, na sua primeira edição, já
acusara uma audiência da mesma natureza, o que levou a Rede Globo de Televisão
a optar pela sua reprodução, em roupas novas. Ocorreu, entretanto, a debandada
da audiência para outras estações televisivas porque o público já não se
conforma mais com um antigo esquema de narrativa maquiavélica. Reconhecendo o
relativo fracasso da repetição, a Rede Globo foi obrigada a investir
audaciosamente em uma novela-denúncia, Roda de Fogo, na qual se trata de algo
pouco revelado pelos telejornais: a época de guerrilha urbana, remessa ilegal
de dólares para o exterior, organização de lobbys para forçar uma candidatura à
presidência da República e a presença de um ex-presidente que já fora chefe do
SNI, de forma explícita denominado de direita. A este fato deve-se acrescentar
o investimento do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) no jornalismo,
competindo com o Jornal Nacional da Rede Globo, e, em grau menor, com o Jornal
da Manchete e o Jornal Bandeirantes. Dois meses após ter implantado uma nova
modalidade de telejornalismo — o jornal com anchorman — o SBT alcançou 10
pontos de IBOPE no horário da novela das Sete da TV Globo [JB 07.12.88].
Se
esta mudança de qualidade expressa por uma abordagem política da história
recente e pela valorização do jornalismo faz com que cada país tenha a
televisão que merece, ou seja, se a TV reflete mudanças introduzidas na vida
política da nação, indaga-se por que não há sinais de modificação em programas
tais como Programa Sílvio Santos, Viva a noite, e no mais recente Domingão do
Faustão da Rede Globo, e também na exibição de séries enlatadas, filmes e
desenhos animados? No que diz respeito aos programas nacionais mencionados,
vale observar que sua estrutura não necessita de modificações para abordar
temas com conteúdo mais político, pois a novela Roda de Fogo também continuou a
ter os ingredientes característicos da estrutura de uma novela: amores e
paixões, suspense e o inevitável final feliz. Mesmo em pleno 1986 este esquema
funciona:
"Membros da OAB elogiaram a atitude de Bruna
Lombardi em Roda de Fogo (como a juíza Lúcia) querendo entregar à Justiça os
documentos que comprometem (seu namorado) Renato Villar. Alguns fãs, porém,
sugerem que ela deixe os documentos de lado e viva seu grande amor" [O
Globo 09.11.86].
Como
se explica, em outras palavras, esta dualidade da programação televisiva, a não
ser que o merecimento do gênero da televisão brasileira se baseia em mesclar o
gosto duvidoso com um crescente interesse pela Res publica (a coisa pública),
nas classes populares após a época denominada de "abertura política"?
Neste sentido é pertinente observar que, durante as greves dos metalúrgicos, no
ABC, no final da década de 70, os índices de audiência das novelas não
indicaram nenhum declínio, embora milhares de mulheres de operários
participassem ativamente do fundo de greve e de distribuição de gêneros
alimentícios de primeira necessidade.
Se
o ditado cada país tem a televisão que merece for verdadeiro para explicar a
densidade de audiência, confrontamo-nos com outro fenômeno que contradiz a
existência de uma proporcionalidade entre procura de informação e nível de
politização. Lucian Pye afirma:
"Quanto mais as pessoas se sentem capazes de
participar das atividades políticas, tanto maior necessidade sentem de educação
e informações. Quanto mais informações têm, tanto mais se interessam pelos
acontecimentos políticos. Quanto mais educação têm, tanto mais informações
buscam" [1967:27].
Constata-se,
contudo, que não se modificou a procura de jornais de sindicatos e de
associações de bairros — embora sendo distribuídos gratuitamente. Percebe-se
também que a TV Educativa — apesar das interferências da censura tem revelado
maior interesse pela Res publica que as outras Redes — não consegue atrair
maiores audiências.
É
importante deixar registrado o nível do debate político na TVE, durante a
elaboração da nova Constituição, e a interferência do Governo:
"A ofensiva política do governo Sarney — que
começou na segunda-feira passada com a fixação, pelo presidente, do prazo de
cinco anos para seu mandato e passou pela demissão, sexta-feira, do ministro
Dante de Oliveira— chegou à TVE. O presidente da Funtevê (órgão ao qual a
televisão estatal, com sede no Rio, es tá subordinada) , Roberto Parreira,
confirmou que o afastamento do diretor-geral da emissora, João Rui Medeiros, na
última quinta-feira, se deve 'à nova política de maior espaço para o governo'
na programação. (...) Parreira nega qualquer tipo de censura prévia a
programações, mas em Brasília assessores diretos de Bornhausen — que não se
quiseram identificar — informaram que o presidente Sarney não permitirá
críticas ao seu governo na rede estatal" [JB 25.05.87].
Neste
quadro delineado, parece-me que os argumentos em favor do ditado cada país tem
a televisão que merece não resistem a simples observações empíricas que
expliquem a densidade da audiência televisiva; ou, em outras palavras, não
evidenciam as razões que levam um cidadão a se tornar um telespectador assíduo.
Visto
que nenhum fenômeno social se explica por si mesmo, convêm procurar não no
próprio veículo, mas fora dele, indicações que respondam à nossa indagação.
Ao
verificar uma constante na densidade de audiência televisiva, à noite, após um
dia de trabalho exaustivo, no que diz respeito à quantidade de televisores
sintonizados, não no mesmo canal, mas sim na mesma programação, é legítimo
procurar uma correlação entre este fenômeno e a organização do tempo, visto que
a atividade ver televisão é incompatível com outras.
Yvonne
Maggie Alvez observa que "em grande número de casas a novela funciona como
um relógio. (...) O jantar é servido na hora da novela, ou janta-se às pressas
para não se perdê-la" [1981: 12]. Ondina Fachel Leal confirma esta
observação:
"Nas casas da vila, é ao entardecer que se liga o
televisor e a partir deste momento o televisor passa a funcionar também como um
relógio na casa. Na novela das seis está na hora de banho das crianças, na das
sete se cozinha o jantar, no Jornal Nacional é hora da janta, e depois do
jantar se assistirá à novela das oito" [1986: 49].
Em
outras palavras, o televisor organiza o tempo e no mesmo instante controla a
execução de atividades, visto que ver ou assistir à televisão é uma atividade
absorvente e com hora marcada.
Nesta
perspectiva, Jacques Le Goff afirma:
"A conquista do tempo através da medida é
claramente percebida como um dos aspectos importantes do controle do universo pelo
homem. De um modo não tão geral, observa-se como numa sociedade a intervenção
dos detentores do poder na medida do tempo é um elemento essencial do seu
poder: o calendário é um dos grandes emblemas e instrumentos do poder"
[1984: 260].
Neste
sentido, o calendário, ou seja, a divisão do tempo no que diz respeito à sua
utilização, é um elemento organizador simultaneamente individual e coletivo que
dirige o cotidiano, e sob este prisma o cartão de ponto deverá ser visto como
extensão do calendário, e, como tal, divide o tempo em trabalhado e
não-trabalhado. Por esta razão, não é mais o ciclo cósmico, o levantar e o
por-do-sol, que rege o dia-a-dia.
3. O MUNDO DO TRABALHO
No
mundo do trabalho é possível encontrar fatores que explicam a densidade da audiência
televisiva, visto que há uma correlação entre esta e a divisão de tempo em
trabalhado e não-trabalhado.
A
composição deste mundo é extremamente complexa, pois, além de envolver o cartão
de ponto e as condições de trabalho, não pode deixar de lado o estado de saúde
do telespectador de baixa renda e alguns hábitos adquiridos na sua educação,
para mencionar apenas alguns fatores. A complexidade deste mundo decorre da
articulação de um conjunto de elementos, cada um tendo sua importância somente
na inter-relação com os demais.
Antes,
contudo, é necessário observar que este mundo do trabalho é um assunto pouco
estudado, pelo menos no Brasil, cujo processo de industrialização tem
características próprias, muito distanciadas dos países exportadores de tecnologia
de ponta. Por este motivo não é possível descrevê-lo exaustivamente, e, por
conseguinte, limito-me a apontar aspectos que são do meu domínio.
O
CARTÃO DE PONTO
Originalmente
o sistema de medição de tempo estava ligado à organização cósmica, cuja unidade
menor era o dia. Na atual era da industrialização, a distinção entre tempo
social e tempo natural se impõe, pois mesmo sendo o tempo social modulado a
partir da natureza e submetido aos ritmos do universo, a divisão do dia de 24
horas esconde individual e coletivamente uma manipulação do tempo.
O
tempo natural, caracterizado pela alternância do dia e da noite, pelas fases da
lua e a sucessão das estações, e mesmo pela localização dos outros planetas,
pouca influência exerce hoje.
O
dia de vinte e quatro horas, dividido em turnos contínuos de oito horas, já se
torna uma constante na civilização industrial, de tal forma que a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT) a contempla no Artigo 73. O fato de que as máquinas
não precisam de descanso, só de manutenção e conserto, faz com que o serviço
nos setores primários e secundários e até mesmo num crescente número de
atividades do setor terciário, divida para os homens o tempo em trabalhado e
não-trabalhado. O tempo que resta após uma jornada de trabalho está em função
do trabalho; visa, pois, à recuperação da força de trabalho. O dia da era da
industrialização é o encravamento entre duas espécies de tempo: uma que regula
a fertilidade e, por conseguinte, a sobrevivência da raça humana,
alimentando-se e multiplicando-se, e a outra que sujeita esta mesma raça humana
ao ciclo de trabalho, imposto pela capacidade das máquinas. Mesmo no campo, os
arados e as ceifadeiras puxados por tratores desconhecem a diferença entre dia
e noite.
Limitando-se
às populações de baixa renda que habitam as periferias das grandes cidades,
constata-se que a hora do levantar está determinada ou controlada pelo apito da
fábrica, pelo cartão de ponto, mesmo para a mulher do assalariado, que tem uma
tarefa social: a preparação do café e da marmita. Visto que a pouca remuneração
reduz o almoço a arroz, feijão, farinha e, vez ou outra, a um ovo ou uma fatia
de carne, o tempero do feijão é feito na hora do preparo da marmita, pois seus
ingredientes clássicos, tais como carne seca, toucinho ou lingüiça, que
permitem além de calorias e proteínas, um gosto peculiar, não estão mais
incluídos na sua preparação. Por esta razão, o tempero é feito na hora em que o
trabalhador se prepara para ao trabalho. Este motivo obriga a mulher do
assalariado de baixa renda, mesmo que ela não trabalhe fora de casa, a se
levantar antes do marido.
Em
outras palavras, o cartão de ponto do marido determina a hora de ela se
levantar, aliás todas as suas demais tarefas de dona de casa, incluindo aquelas
realizadas nos dias de folga e feriados.
A
hora de levantar é calculada pela medição do tempo gasto pelo assalariado para
se deslocar da sua casa para o local do trabalho. Neste cálculo estão incluídos
os minutos necessários para ele se dirigir para a parada de ônibus e/ou
estação, o tempo gasto pelo ônibus e/ou trem e uma previsão de tempo
"extra", devido a um possível engarrafamento de trânsito ou atraso do
trem. Ou seja, calcula-se, tomando como referência a hora de entrada no
serviço, a hora do levantar, e é por esta razão que os programas radiofônicos,
a partir das três horas da madrugada, caracterizam-se pela marcação do horário.
Um levantamento que realizei, evidenciou, por exemplo, que o Programa Luciano
Alves Comunica, que se iniciava às quatro horas da madrugada, mencionou, num
espaço de sessenta minutos, vinte e três vezes a hora. Este programa
radiofônico transmitido em 1985, pela Rádio Globo AM, de segunda-feira a sábado
de 04:00 a 7:00, foi decupado em 18.09.85, no horário de 4:00 a 5:00hs.:
—
Noticiário: 01
— telefonemas com rádio-ouvintes: 12
—
músicas: 05
—
narração/encenação: 02
—
informes de utilidades: 11
—
mensagens publicitárias: 19
—
propaganda governamental: 01
—
indicação do horário: 23
—
prefixos da estação: 15
—
prefixos do programa: 14
—
prefixos de seções do programa: 07.
Para
finalizar a questão do tempo, é útil lembrar o resultado de uma pesquisa
realizada, há alguns anos, pelo Ministério do Transporte: em média os
trabalhadores de baixa renda gastam, por dia, entre duas e meia a três horas em
deslocamentos entre sua moradia e o local de trabalho. Acrescentando a este
dado a jornada de trabalho que , normalmente, mesmo em tempo de cr se
econômica, gira em redor de dez horas, e incluindo ainda uma hora de descanso,
obtemos o resultado médio de aproximadamente 13 a 14 horas diárias durante as
quais o trabalhador de baixa renda está a serviço, de modo direto, do mundo do
trabalho. E isto numa forma cíclica, durante cinco dias e meio por semana, mês
após mês; sobrando, portanto, um dia e meio por semana de descanso, no qual o
relógio não exerce uma função de controle. Jacques Le Goff observa:
"A grande virtude da semana, é introduz no
calendário uma interrupção regular do trabalho e da vida quotidiana, um período
fixo de repouso e tempo livre. A sua periodicidade pareceu adaptar-se muito bem
ao ritmo biológico dos indivíduos e também às necessidades econômicas das
sociedades" [1984: 280].
O
RITMO DO TRABALHO
A
este ritmo biológico estabelecido em função da organização do mundo do trabalho
, corresponde também o ritmo de trabalho propriamente dito. Um ritmo
extremamente monótono, em virtude da constante repetição de movimentos
idênticos, como mostra o filme "Tempos Modernos" de Charles Chaplin.
A
repetição dos movimentos ou é coordenada pela linha de montagem que nega a
possibilidade de alteração mesmo do posicionamento do corpo, ou pela chefia
intermediária, que não permite um mínimo de descanso em virtude dos métodos
avaliativos para medição quantitativa do trabalho.
Além
da repetição dos movimentos idênticos que por si só já expressa um controle
ritmado, o mundo do trabalho se caracteriza pela repressão presente na
constante vigilância que regula mesmo o tempo necessário para fazer as necessidades
fisiológicas.
Monotonia,
controle e repressão não são propriedades do trabalho apenas do setor
secundário. O setor terciário, seja nos serviços de bancos, de escritórios ou
de comércio, seja no transporte, manutenção ou qualquer outra forma de atendimento
público, também está submetido a estes mesmos mecanismos, embora com
características próprias, de subordinação ao objetivo do mundo do trabalho: a
rentabilidade.
Também
é pertinente neste contexto mencionar os resultados próprios à divisão social
do trabalho, pois os últimos estágios do processo de produção, além de
reduzirem o movimento do corpo a gestos idênticos e repetitivos, negam o poder
criativo, independente do seu grau de desenvolvimento, de qualquer assalariado
de baixa renda. O objeto que passa por centenas de mãos, é produzido de forma
parcializada por gestos impessoais, não tomando o operário qualquer consciência
nem responsabilidade pelo resultado final. O trabalho, em resumo, foi alienado
do seu elemento lúdico.
A
divisão social do trabalho também estabelece um ritmo organizado a partir da
quantidade de peças que constituirão o produto final.
O
ESTADO DE SAUDE
Pode-se
ainda mencionar uma terceira qualidade de ritmo, que diz respeito à questão da
fronteira entre a audição e os ruídos ambientais, tanto em relação à sua
intensidade quanto decorrente da sua continuidade, ambas caracterizadas pela
total ausência de harmonia, às quais os trabalhadores de baixa renda estão
sujeitos.
Independente
do grau de decibéis, a constância destes ruídos, mesmo que não sejam mais
percebidos no nível da subjetividade, objetivamente afeta o estado de saúde
provocando mutações, incondicionalmente destruidoras da ordem criada pela
seleção que o aparelho auditivo exerce. Sob o título "Ruído industrial é o
mais prejudicial à saúde", o Jornal do Brasil publica resultados de um
estudo realizado pelo otorrinolaringologista Moacir Tabasnik, professor na
UERJ. A reportagem observa, citando o professor:
"Assim como reage ao frio, ou ao calor, o
organismo reage ao ruído. (...) As reações ao ruído variam, mas os homens são
mais suscetíveis, provavelmente por fatores endócrinos. (...) As mudanças
fisiológicas podem ser variadas, atingindo as áreas cardiovascular,
respiratória, neurológica e psicológica". Em resumo, conforme a
intensidade, o ruído pode provocar irritação, fadiga e mal estar, aumentar o
nível de colesterol, causar úlcera e outros distúrbios digestivos, prisão de
ventre, alterações químicas na urina e impotência [JB 09.01.89].
Ao
sofrerem mutações, os elementos reguladores auditivos — cuja atividade
determina a qualidade da percepção informativa — não têm mais as mesmas
condições sociais de atuação, reduzindo a seleção natural abaixo do nível
considerado normal. Esta constatação por si só evidencia que a natureza dos
ruídos oriundos do local de trabalho resulta na desestabilização da saúde , no
decorrer, evidentemente, de um processo constante e contínuo, da perda de
aptidão do raciocínio, visto que o estado emocional está sendo afetado.
Eventualmente
esta desestabilização da seleção natural de informações (ruídos) poderá se
constituir em uma explicação, para o fato de os locutores da Rede Globo de
Televisão não se dirigirem em tom de conversa ao telespectador. Estes
locutores, como também o apresentador do programa Domingão do Faustão, utilizam
um volume de voz incompatível com o ambiente familiar em que o telespectador se
encontra. O que caracteriza, entre outros, o Programa Sílvio Santos e o Viva a
noite — no que diz respeito à utilização do microfone — é exatamente o clima
"familiar" criado pelos seus apresentadores, embora os três programas
mencionados sejam realizados em presença de auditórios.
Além
desta conseqüência originada pela presença de ruídos nos locais de trabalho,
convém mencionar dados levantados por uma pesquisa entre trabalhadores
metalúrgicos, no município do Rio de Janeiro. A pesquisa não teve condições de
ser finalizada em virtude de constrangimentos surgidos na resposta às questões
colocadas sobre as condições de saúde dos trabalhadores desta categoria.
Conseguiu-se, contudo, evidenciar que os operários que estavam dispostos a
preencher o questionário sofreram cronicamente de insônia, diarréia e
impotência sexual.
Em
outra oportunidade, um trabalhador de baixa renda que visitara seus parentes no
interior, comentou comigo:
"Esse pessoal da roça não conhece a vida que a
gente leva na cidade. Eles (os parentes) queriam saber as coisas com a mulher
da gente. Você sabe de que estou falando, né? Então eu disse: ora, um dia a
gente não tem disposição porque o trabalho cansou muito ou porque o chefe
aperreou a gente. Outro dia, a mulher da gente não quer porque está aborrecida
porque o dinheiro não deu. Aí, só duas vezes por semana. Aí o pessoal da roça
não entende. Ora, eles fazem até mais de seis vezes por semana".
Este
quadro, caracterizado pela irregularidade do estado de saúde, comprova, sem
dúvida, a debilidade física dos trabalhadores.
A
saúde torna-se ainda mais debilitada devido à baixa remuneração. Conforme dados
estatísticos disponíveis, aproximadamente 67,8% da força de trabalho empregada
possuem uma renda mensal entre 0,5 e 3 salários mínimos [JB 31.12.88]. Estes,
conforme a Constituição, Artigo 7°, se destinam à habitação, alimentação,
educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.
Ao
estabelecer o mínimo necessário para atender às necessidades de uma família de
quatro pessoas, o DIEESE (Departamento Intersindical de Estudos Sócio Econômicos)
calcula um salário 75,5% superior àquele atualmente em vigor [JB 27.11.88].
Para chegar a este valor, tomou-se como referência a lei da Ração Mínima
promulgada em 1937, acompanhando, no que diz respeito a seus componentes
alimentares, diretrizes da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Observando
a composição alimentar estabelecida pela lei da Ração Mínima, 75% do valor
líquido da atual remuneração mínima deveriam ser destinados à alimentação do
próprio trabalhador. Sendo ele pai de família, a aplicação desta lei se torna
irreal. A conseqüência imediata desta constatação é o estado frágil de saúde da
grande maioria dos trabalhadores de baixa renda.
Nesta
perspectiva, as condições psicológicas e físicas do trabalhador, que apontei
acima, somadas às reais possibilidades de alimentação adequada aos esforços
físicos exigidos pelo trabalho, executado diariamente, e ao tempo gasto em
transporte, resultam num estado de espírito que praticamente impossibilita
qualquer motivação para exercer atividades que exijam esforço intelectual.
O
HÁBITO DE PREENCHER - O TEMPO NÃO-TRABALHADO
Menciono
a falta de motivação para atividades que exigem esforços intelectuais por dois
motivos. O primeiro se refere à precariedade do sistema escolar e o segundo aos
hábitos e atitudes adquiridos pela educação.
No
que diz respeito à precariedade escolar deve-se observar que a escrita, tanto
quanto a leitura são técnicas — embora não sejam apenas isso; a literatura o
comprova. A escrita se destina a dar formas às idéias e a leitura visa captar
idéias materializadas na escrita. A aplicação destas duas técnicas envolve uma
atividade mental de alta abstração, por se constituir uma "tradução"
de códigos bastante ambíguos para o concreto e o palpável. O domínio destas
técnicas, como aliás de qualquer técnica, consiste no conhecimento de suas
regras e sua constante aplicação. A escrita e a leitura são constituídas por um
conjunto de operações intelectuais muito complexas. Trata-se não de
justaposição de palavras, mas de escolher entre as combinações possíveis aquela
que dá a forma exata à idéia a ser transmitida ou a ser captada. Na
transferência destas técnicas e no seu domínio, o sistema escolar é falho e não
promove o que nos interessa neste instante: o hábito de leitura.
Explica-se,
desta forma, embora não de maneira exclusiva, a baixa tiragem do jornal O Dia,
com aproximadamente 250 mil exemplares nos dias úteis, considerando-se que este
jornal tem sua maior penetração nas camadas de baixa renda no Rio de Janeiro.
Neste
contexto é pertinente citar uma pesquisa realizada pelo jornal O Globo.
Verificou-se que, no início da década de oitenta, somente 26% da população da
Grande São Paulo, na faixa etária de 15 a 65 anos, tem o hábito de ler jornal
[10.05.81]. Considerando que o ensino do 1° grau no Estado de São Paulo supera
em qualidade o dos demais Estados em virtude das exigências postas pelo
crescente parque industrial, é possível avaliar o significado da tiragem média
de 1.668.000 exemplares de jornais que diariamente circulam nas capitais do
país.
Ainda
um outro fator deve ser mencionado para explicar a falta de hábito de leitura.
Na educação do dia-a-dia, as populações de baixa renda se confrontam com uma
dificuldade crônica: a falta de dinheiro decorrente da remuneração insuficiente,
que impossibilita a diversificação das atividades de entretenimento. Freqüentar
cinema, teatro, museu, exposições, concertos e outras atividades desta natureza
que, pelo menos em tese, poderiam estimular habilidades e qualificações, e por
conseguinte, levar à procura de informações complementares mediante a leitura,
são opções pouco acessíveis. Mesmo podendo usufruir gratuitamente desses
eventos, o deslocamento por meio de transporte coletivo implica em gastos — sem
mencionar ainda, primeiro, o número reduzido de ônibus e trens suburbanos que
circulam nos fins de semanas e, segundo, a liberdade de não ser obrigado a
recorrer ao transporte coletivo como nos dias de trabalho.
Este
conjunto de fatores também contribui para a não formação do hábito de leitura,
pois, em última análise, a aquisição de qualquer hábito é decorrente de
elementos favorecedores.
O
SISTEMA DE CRÉDITO PESSOAL E O PODER DE COMPRA
Convém
ainda ressaltar que o sistema de crédito pessoal é um elemento a mais que
contribui para que o trabalhador de baixa renda apele para o televisor para
preencher o seu tempo não-trabalhado.
A
necessidade do descanso, em vista da recuperação da sua força de trabalho, faz
com que a aquisição de um televisor em suaves prestações, ou seja, dentro das
possibilidades reais da economia familiar de baixa renda, alie-se a mais outros
elementos que determinam a escolha da televisão em relação à falta de maiores e
mesmo melhores opções para preencher o tempo não-trabalhado. A atração pela
imagem, seja em cores seja em preto e branco, exerce uma influência
proporcional a um nível de abstração que é resultado tanto da natureza do
trabalho exercido quanto de hábitos e atitudes adquiridos por ocasião da
educação na família e na escola.
Diante
deste quadro, a televisão pode ser vista como uma das poucas opções, e o mundo
do trabalho e seus elementos correlatos, mesmo não sendo tratados de forma
aprofundada, mas de modo suficiente para o entendimento do seu significado,
explicam, pelo menos em parte, os altos índices de audiência decorrentes do
usufruir massivo do televisor à noite após uma longa jornada de trabalho
exaustivo, repressivo e monótono.
Esta
constatação me permite concluir que não se trata, de forma alguma, de costume
ou de vício quando uma família de baixa renda liga seu televisor, à noite, para
preencher o tempo não-trabalhado. Faz parte integrante do cotidiano, isto sim,
sentar-se em frente do televisor, todas as noites, como sendo uma imposição
decorrente das características do mundo do trabalho, e sobretudo como sendo o
entretenimento o mais adequado às condições físicas e psicológicas em que esta
família se encontra após um dia de trabalho exaustivo.
Entretanto,
não está claro ainda se a audiência televisiva de baixa renda simplesmente vê televisão
ou se esta escolhe o que considera o melhor programa, ou seja, se esta
audiência assiste à televisão. Esta indagação ainda não foi respondida.
4. O MUNDO DO TELEVISOR
O
conjunto de fatores, acima enumerado, característicos do mundo do trabalho no
Brasil, e que formam um todo articulado, possibilita compreender as razões que
levam o cidadão a se tornar telespectador assíduo, ou seja, explica a densidade
constante de audiência televisiva, que raramente sofre oscilações
significativas.
Mesmo
sendo Janeiro e Fevereiro meses considerados atípicos por causa das férias
escolares, o quadro comparativo que segue, mostra que a audiência média
televisiva de todas as Emissoras juntas, não muda seu comportamento, no Rio de
Janeiro:
quadro III
média do total de televisores ligados no Rio de
Janeiro
|
Janeiro |
Fevereiro |
Março |
2ª feira |
33% |
30% |
32% |
2ª feira |
33% |
29% |
31% |
2ª feira |
32% |
29% |
30% |
2ª feira |
31% |
30% |
30% |
2ª feira |
31% |
29% |
31% |
sábado |
30% |
25% |
28% |
domingo |
31% |
28% |
34% |
(fonte: JB 23.01.83)
Esta
densidade constante de audiência televisiva tem uma característica a mais, como
pode ser verificado ao se comparar a audiência média do mês de janeiro com aquela
do mês de fevereiro de 1989, no Rio de Janeiro, como mostra o quadro IV:
quadro IV
horário |
Globo |
soma das outras Emissoras |
||
|
Jan. |
Fev. |
Jan. |
Fev. |
Das 18h às 22h |
55% |
56,5% |
15% |
16.5% |
fonte: M&M 27.02.89
Entretanto
estes dados quantitativos não explicam a preferência deste telespectador pela
Rede Globo de Televisão.
Anteriormente
fiz uma distinção entre ver uma programação e assistir a programas. Os altos
índices alcançados pela Rede Globo poderão sugerir, à primeira vista, que a
maior parte desta audiência vê uma programação. Em determinadas ocasiões,
contudo, o telespectador vira o botão, como indicam dados do IBOPE. Por esta
razão é provável que o cidadão brasileiro assista à televisão, como se pode
deduzir dos exemplos que seguem:
"Quarta-feira, pela segunda vez na semana, a
Bandeirantes superou os índices da Globo no período da noite. Na transmissão do
jogo (da Copa Pelé) entre Brasil e Uruguai, na Vila Belmiro, a Bandeirantes
conseguiu a média de 38 pontos em São Paulo, maior ainda do que no jogo com a
Itália, com Pelé em campo, que foi de 32. No Rio não chegou a tanto, mas
atingiu média alta" [JB 12.01.87].
"A TV Manchete registrou, segunda-feira, pela primeira
vez, no horário da novela Corpo Santo, 31 pontos no Ibope. Motivo: a morte da
personagem Simone, a heroína da história, que está provocando uma enxurrada de
cartas e telefonemas à emissora" [JB 23.07.87].
Embora
os dados fornecidos não distingam o público espectador conforme as categorias
habituais, pode-se, de certo, admitir que não somente as categorias A e B
mudaram de canal por terem sido informadas, com antecedência, por jornais,
sobre a realização de um programa com apelo especial. Mesmo não tendo o hábito
de ler jornal, as categorias C e D também mudaram, fato este evidenciado pela
grande oscilação dos índices de audiência. O fato de que uma novela disparou,
quase de repente, na corrida pela disputa da preferência do telespectador por
causa de um momento culminante na história, confirma que existe um número
significativo de espectadores à procura de programas por parte das categorias
tanto A e B quanto C e D.
O
SBT, já em 1976, quando ainda se chamava TVS, iniciou suas transmissões no Rio
de Janeiro, com uma política de programação para, além de conquistar audiência,
atender a telespectadores que estavam mais interessados em assistir a programas
do que a ver uma programação. Esta política denominava-se de "sessão
contínua" que consistia em repetir, consecutivamente, três ou quatro
vezes, um mesmo programa, como no cinema, e que permitia os telespectadores
assistirem a esse programa sem perder os da TV Globo e da TV Tupi [MOVIMENTO
07.06.76 e AMIGA TV TUDO 21.07.76]. Em 1987, o SBT repetiu esta política com os
seriados Holocausto e Raízes, anteriormente exibidos pela TV Globo.
Seja
como for, há muitos anos os programas ou a programação da Rede Globo gozam da
preferência do público espectador, à noite, um fato que não se explica por si
mesmo. O conjunto de fatores do mundo do trabalho somente faz compreender a
densidade de audiência à noite; não a preferência por uma determinada Emissora.
Por esta razão impõe-se verificar se fatores deste mundo do trabalho refletem,
de forma específica, nas produções da Rede Globo, fazendo com que estas se
distingam daquelas produzidas pelas outras Emissoras de Televisão. Somente
desta maneira torna-se possível encontrar uma explicação que justifique a
preferência dada à TV Globo, às noites, após um dia de trabalho exaustivo.
Visto que todas as Redes de Televisão, além da imagem, transmitem uma
programação e que cada uma destas programações têm características próprias,
impõe-se a abordagem de três temas, a saber: a programação televisiva noturna,
a codificação icônica e a narrativa televisiva.
O
CARÁTER CÍCLICO DA PROGRAMAÇÃO DA REDE GLOBO
Ao
iniciar a enumeração de elementos que compõe o mundo do trabalho, abordei em
primeiro lugar, o sistema de medição do tempo. Verifiquei que um dia de
trabalho tem seu ritmo próprio regido pelo cartão de ponto. Este ritmo é
continuado pela programação da Rede Globo de Televisão cuja característica é
ser cíclica.
Um
levantamento cuidadoso da programação noturna revela que a rigor, desde o
início da década de 70, a Rede Globo introduziu, de modo gradativo, uma só
modificação na sua programação, no horário entre 18 e 22 horas. Esta
modificação pode ser comprovada pela permanência da expressão novela das oito,
pois hoje a "novela das oito" começa às 20h30min, salvo algumas
exceções ocasionadas pela Copa do Mundo e pelos Programas do TRE.
A
rigor, a programação noturna da Rede Globo é a mesma desde o início de 70; o
que se modificou são os nomes dos programas, como mostra o quadro que segue:
quadro V
4ª feira |
09.02.72 |
16.12.87 |
17h55 |
|
novela Bambolé |
18h |
novela Meu Pedacinho de chão |
|
18h45 |
Papo firme (esporte |
|
18h50 |
|
novela Sassaricando |
19h |
novela O primeiro amor |
|
19h40 |
|
Diário da Constituinte |
19h44 |
Jornal Nacional |
|
19h45 |
|
RJ/TV |
20h |
|
Jornal Nacional |
20h05 |
Linguinha (humor) |
|
20h15 |
novela O homem que deve morrer |
|
20h30 |
|
novela Mandala |
21h |
Discoteca do Chacrinha |
|
21h25 |
|
Chico Anísio Show |
22h |
Bandeira 2 |
|
22h30 |
|
minissérie Ordem de matar |
Fonte: O Globo
Há,
entretanto, uma particularidade: a mudança do horário da "novela das
oito" se deve a um resultado de uma pesquisa realizada sob encomenda da Rede
Globo para apurar as razões que ocasionaram a queda de audiência televisiva nos
sábados, às 22h, da mesma forma que nos demais dias da semana, incluindo o
domingo.
Em
virtude de ser obrigada a se levantar cedo de segunda a sábado por causa do
cartão de ponto, a maioria dos assalariados de baixa renda costum a deitar- se
antes das dez horas. Em conseqüência disto, o nível da audiência televisiva
sofre uma queda acentuada nesta hora. Na noite de sábado esta queda se repete,
embora o cartão de ponto não organize o tempo do dia seguinte, por este ser
domingo. O que ocasionava esta queda de audiência nas noites de sábado?
Interessada neste problema — pois queria garantir uma audiência constante nesta
noite — a Rede Globo realizou uma pesquisa.
Uma
notícia no Jornal do Brasil de 12.05.72, sob o título TV revela hora de sábado
em que carioca é mais conjugal, divulga dados desta pesquisa sobre os hábitos
da audiência televisiva nos sábados:
"Estudando, hora a hora, os hábitos dos
telespectadores, ele [Homero Sanchez] descobriu — na pesquisa sobre
comportamento sexual — que a queda de audiência que causava preocupação,
indicava que um número considerável de cariocas se dedicava às obrigações
conjugais" [JB 12.05.72].
Nesta
perspectiva, um dado de uma outra pesquisa é relevante. Lívia Neves de Holanda
Barbosa, no seu estudo sobre o sistema de representação dos dias da semana em
dois grupos de mulheres compostos por 10 operários e 17 funcionárias de nível
médio e superior, observa:
"Um bom fim-de-semana é aquele em que, além das
relações afetivas (amizade, namoro etc.) pinta uma boa 'trepada' como disse uma
das informantes" [1984: 22].
Desde
então, a Rede Globo gradativamente começou a alterar o horário noturno da sua
programação — de segunda a sábado — de tal forma que, a partir de 1975 a
"novela das oito" se inicia às 20h30min. Isto faz com que a primeira
novela transmitida no horário considerado nobre, comece às 18h, a segunda às
19h, garantindo, ao mesmo tempo, o toque de cinco segundo do Jornal Nacional
pontualmente às 19h 59min. A não alteração da programação noturna possibilita
prevê-la, como também o trabalhador de baixa renda de antemão já sabe, salvo
modificações profundas no seu dia-a-dia, o que fará no dia seguinte, e mesmo no
mês que segue. Em outras palavras, a programação se caracteriza por seu caráter
cíclico, de tal forma que outras Redes de Televisão se referem à programação da
Rede Globo para poder obter índices de audiência proporcionais ao capital
investido.
Este
caráter cíclico se reproduz também em programas humorísticos tais como TV
Pirata, Chico Anísio e, até pouco tempo atrás, Viva o Gordo. Ao iniciar,
anualmente, no mês de março, os programas compostos por personagens já
conhecidos e novos, a ordem cronológica da apresentação dos esquetes só sofre
alterações ou por intervenção da (auto)censura ou por baixos índices de
aprovação por parte da audiência.
O
SBT usa várias maneiras para poder romper com esta "ciclicidade" da
Rede Globo, com o intuito de quebrar um dos mecanismos que garante a hegemonia
à TV Globo:
"Domingo passado, Sílvio Santos ousou mais uma
vez. Durante seu programa, anunciou a exibição do seriado Pássaros Feridos de
uma forma bem original: avisou ao público que a série iria ao ar de segunda a
sexta-feira, logo depois de Roque Santeiro. Com aquele sorriso que encanta o
público, Sílvio Santos elogiou a atração da Globo e disse que ninguém
precisaria perder a novela, mas, depois, deveria mudar o canal para assistir ao
tal fantástico seriado. A manobra deu certo e Sílvio Santos chegou a bater a
audiência da Globo em São Paulo" [JB 21.08.86].
Dois
anos depois, por ocasião do programa do SBT Cinema em Casa que exibiu um filme
de grande apelo popular, a Rede Globo mudou de estratégia:
"A TV Globo já decidiu o que fazer para competir
com a TVS que exibirá hoje o filme "Rambo II". A ordem é esticar o
Jornal Nacional e a novela Vale Tudo — que normalmente tem uma hora de duração
— foi editada às pressas, ontem à tarde, para ir ao ar entre 20h40min e
22h40min" [JB 26.08.88].
Embora
programado para entrar no ar às 21h30min; 0 SBT retardou a transmissão do filme
até a TV Globo terminar com a novela Vale Tudo, deixando na tela do televisor
um aviso para os telespectadores da Globo nos seguintes termos: assista
tranqüilamente à novela; nós não vamos iniciar o filme "Rambo II"
antes do capítulo da novela terminar.
Uma
terceira forma desta "ciclicidade" consiste na regularidade dos
intervalos para a transmissão de mensagens publicitárias. Na maioria das vezes
estes intervalos ocorrem de dez em dez minutos, e invariavelmente terminam com
uma chamada relacionada a um programa televisivo ou da mesma noite ou de um dos
dias seguintes.
A
única exceção na característica de regularidade de intervalos comerciais foi
introduzida pela Rede Globo a partir da pesquisa mencionada no programa
Primeira Exibição, transmitido aos sábados, imediatamente após a "novela
das oito". O primeiro intervalo comercial se dá após 20 ou 25 minutos, com
o intuito de garantir uma densidade de audiência após as 22h, quebrando desta
forma a rotina cotidiana da população de baixa renda. Esta estratégia, na
véspera de domingo, dia em que a ausência do cartão de ponto permite adiar a
hora de levantar, encontra uma plausível explicação no fato de que, ao
iniciar-se um filme, um problema é apresentado. A especificação deste problema
e a sua localização geralmente ocupam uns 20 a 25 minutos, tempo suficiente
também para despertar a curiosidade do telespectador e fazê-lo modificar seus
hábitos até mesmo no nível das relações matrimoniais, conforme detectou a
pesquisa de audiência do IBOPE.
Nesta
perspectiva, existe uma concordância entre a regulação do tempo trabalhado e do
não-trabalhado. Uma concordância que, em última análise, toma como referência o
relógio de ponto que, como afirmei, não apenas organiza o tempo do assalariado
de baixa renda como também o da sua mulher. A pesquisa citada não deixa dúvida.
Ao
mesmo tempo, nas várias formas de "ciclicidade" da programação da
Rede Globo, encontram-se argumentos para explicar a densidade de audiência
desta Rede em detrimento das demais. Estas, para organizar sua programação,
tomam como referência não o cotidiano da audiência possível, mas a
aparentemente todo-poderosa concorrente. A Rede Globo somente mostra
competência no entendimento dos hábitos da população de baixa renda, criados
pelo cartão de ponto.
Percebe-se
que a programação nos domingos acompanha estes hábitos, pois o tempo
não-trabalhado nestes dias se caracteriza por uma maior disponibilidade de
utilização, o que livra o trabalhador de baixa renda da rigidez do cartão de
ponto dos dias úteis. Esta é uma das razões de não haver novela no domingo,
pais a novela cuja natureza consiste na continuidade da narrativa dividida em
capítulos, exige um horário fixo. O programa Fantástico, Show da Vida não exige
pontualidade por parte do espectador, tampouco o programa Os Trapalhões, por
não possuírem a característica da continuidade narrativa.
Em
resumo, tanto a programação horizontal (programas diários distribuídos pelos
dias da semana) quanto a vertical (a seqüência dos programas num dia) da Rede
Globo de Televisão se encaixam no cotidiano das camadas de baixa renda de tal
modo que organizam o tempo não-trabalhado destas camadas. E assim como o
assalariado sabe o que fará, no seu local de trabalho, no dia seguinte, no mês
seguinte, e mesmo no ano que se segue, assim também não haverá grandes
modificações no preencher do seu tempo não-trabalhado: às 8 horas em ponto o
Jornal Nacional entrará no ar; segue-se a novela e, conforme o dia. ele
assistirá a um filme, um seriado ou um programa humorístico.
A
CODIFICAÇÃO ICÔNICA
Um
segundo componente a ser analisado para entendermos as razões que levam as camadas
de baixa renda a preferir a programação noturna da Rede Globo, encontra sua
explicação na codificação icônica dos programas que compõem esta programação.
Não é suficiente afirmar que a Rede Globo atende melhor ao gosto popular do que
as demais Emissoras. Simples constatações contradizem esta afirmação. A título
de exemplo, pode ser mencionada a disputa pela audiência, no decorrer de 1988,
entre a Rede globo e o SBT.
É
do conhecimento público que, durante anos, o programa humorístico Viva o Gordo,
da Rede Globo, gozava da preferência dos telespectadores. Muitas vezes, nas
segundas feiras à noite, esta Rede obtinha uma audiência maior que a soma dos
televisores ligados às outras Emissoras.
O
SBT, por motivos mercadológicos, decidiu investir na modernização da sua
programação, com o objetivo de desfazer sua imagem "brega" junto às
classes empresariais, e de ampliar o número de seus clientes para preencher os
intervalos comerciais. Contratou o artista Jô Soares, e é pertinente observar
que nesta contratação estava prevista também a contratação dos profissionais
responsáveis pelos textos dos quadros humorísticos.
Quando
finalmente estréia o programa Veja o Gordo na SBT, verifica-se que os
telespectadores — que sempre deram preferência ao programa humorístico — não
mudam de canal; ficam com a Rede Globo que inaugura o programa Tela Quente.
De
certo, o filme lançado pela TV Globo na noite da estréia de Jô Soares no SBT,
foi imbatível: "O retorno de Jedi", um longa-metragem inédito na TV,
com ótima bilheteria no cinema. Ocorre, entretanto, que também nas
segundas-feiras que se seguem, a expectativa de audiência gerada pela
contratação de Jô Soares e sua equipe não é preenchida, mesmo não sendo os
filmes do programa Tela Quente da qualidade de gênero "O retorno de
Jedi". O SBT chega até a pôr em dúvida os dados de audiência apurados pelo
IBOPE. Sílvio Santos contrata pesquisadores da USP para fazer a pesquisa. Meses
depois, a equipe contratada confirma os dados apurados pelo IBOPE.
O
SBT, então, começa a ousar, e no quadro "Zezinho", o último do
programa Veja o Gordo, o humorista faz uma artista mostrar seus seios, algo que
somente foi insinuado na Rede Globo. A audiência, entretanto, fica com a Globo.
Quando,
posteriormente, o programa A Praça é Nossa, do SBT, ganha em audiência da Globo
nas quintas-feiras, esta última transfere o programa Tela Quente para aquela
noite. Em substituição a este programa a Globo transmite, nas segundas-feiras,
o seriado norte-americano "A Máfia". Não se constataram oscilações significantes
na disputa pela audiência.
Não
é lícito afirmar que a população televisiva se acostumou a ver a programação da
Rede Globo. Há indicações suficientes que negam a veracidade desta afirmação,
como evidenciam dados levantados pelo IBOPE. Cito um exemplo:
"Na sexta-feira, dia 16, o Ibope foi testemunha
de que a novela Dona Beija da Manchete alcançou, no horário das 21h30min, 36
por cento de audiência. Neste mesmo horário o programa Chico Buarque/Caetano
Veloso, na TV Globo, pegava 31 por cento de Ibope" [JB 20.05.86].
Aliás,
ao se defender a hipótese de que a audiência se acostumou a ver a programação
noturna da Globo, como se explica o fato de que os telespectadores, na sua
imensa maioria, decidem "mudar de canal", de noite, após um dia de
trabalho exaustivo, quando um programa da Globo perde sua capacidade habitual
de atração, como aconteceu com o seriado brasileiro Tarcísio & Glória? A
audiência televisiva escolheu A Praça é Nossa, do SBT, derrubando a Globo, não
por este ser mais "popular". Hoje — no período em que estou
escrevendo este texto — Globo Repórter reconquistou sua audiência costumeira, e
A Praça é Nossa, mesmo apresentando ídolos populares (agora sim é empregada
corretamente a qualificação popular) como Pelé e Zico, não consegue repetir o
que era considerado uma façanha do Sílvio Santos.
Defendo,
ainda, que não basta uma novela ser "boa" para garantir uma audiência
que justifique o investimento médio de aproximadamente 2 milhões de dólares.
José M. O. Ramos, no livro "Telenovela — história e produção", esboça
os critérios que definem a qualidade de uma novela como "boa":
"É preciso prestar atenção nos seguintes itens: o
enredo tem que ser realista, plausível de acontecer com cada um dos
espectadores, para que melhor se identifiquem com os personagens; não se deve
apresentar problemas muito distantes, complicados ou insolúveis" [1989:
74].
Com
estes critérios à disposição, parece-me, é adequado classificar como
"boas" as novelas da Rede Manchete. Entretanto, dificilmente, e mesmo
com artifícios, a TV Manchete é capaz de alcançar, com a ajuda das suas
novelas, o 1° lugar do IBOPE, à noite:
"O capítulo de Dona Beija em que aparece Maitê
Proença tomando banho nua numa cachoeira só foi ao ar na quarta-feira graças a
uma decisão pessoal do presidente José Sarney. A censura tinha vetado, em cima
da hora, o capítulo inteiro, que só foi ao ar, mesmo assim com alguns cortes,
devido a um providencial telefonema do empresário Adolfo Bloch, o dono da TV
Manchete, ao presidente da República, meia hora antes de a novela entrar no
ar" [JB 02.05.86].
Mesmo
este tipo de artifício — a nudez feminina — nem sempre consegue seduzir uma
parcela razoável da audiência televisiva. Assim a novela Carmen conseguiu
entrar nos dois dígitos do IBOPE somente em determinadas ocasiões:
"Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor. O
capítulo da novela Carmem que irá ao ar hoje pela TV Manchete mostra em toda a
sua plenitude, iluminada pela luz de uma fogueira, a nudez de Lucélia
Santos" [JB 14.10.87].
Parece-me,
portanto, que outros motivos fazem com que a absoluta maioria dos
telespectadores fique preferindo a programação da Rede Globo de Televisão.
Já
em 1974 realizei uma pesquisa, embora sem grande rigor científico, para
verificar os mecanismos empregados pela TV Globo na produção de novelas, com o
intuito de apreender elementos componentes da sua codificação icônica. Analisei
as novelas Fogo sobre Terra e A Corrida do Ouro, e constatei que, em média —
incluindo o movimento de "travelling" — somente em 29,7% do total das
tomadas dos capítulos analisados, a câmera estava em movimento, ou seja, em
mais de 70% de todas as tomadas, havia movimento somente na imagem. De início,
não dei muita importância a este dado.
Mas
em 1975, dados primários resultantes da minha pesquisa sobre a utilização do
close nas novelas Escalada e Meu Rico Português produzidas, respectivamente,
pela Rede Globo e pela então Rede Tupi, foram tão relevantes, no que diz
respeito ao tema em pauta que, posteriormente procurei confirmá-los mediante outros
levantamentos sobre a codificação icônica de programas televisivos.
Sempre
preocupado em descobrir as razões que levam as populações de baixa renda a dar
preferência à Rede Globo à noite após um dia de trabalho exaustivo, analisei,
de tempos em tempos, a composição das imagens televisivas e, em meu entender,
não há uma mera coincidência: a codificação icônica desta Rede é seu padrão
global. Vejamos.
Inicialmente,
limito-me a apresentar, de modo comparativo e sucinto, os dados da pesquisa
sobre as duas novelas, realizada em 1975, apresentando o método utilizado na
coleta de dados. E, por fim, comparo as conclusões às quais cheguei com os
resultados obtidos na análise da codificação icônica de novelas posteriores e
do Jornal Nacional.
—
O MÉTODO DE COLETA DE DADOS
Para
garantir o caráter aleatório dos dados primários para posterior análise,
utilizei o método Semana Composta, que consiste em analisar um capítulo em cada
dia da semana, durante seis semanas consecutivas, sendo o primeiro capítulo o
da segunda-feira da primeira semana, o segundo capítulo o da terça-feira da
segunda semana, e assim por diante.
No
que diz respeito ao tempo, este método abrange aproximadamente 25% da duração
de uma novela; em relação à quantidade de capítulos analisados, atinge-se 4%
sobre o total de 150 capítulos.
Por
outro lado, os capítulos analisados situam-se no meio da novela, o que
significa, de fato, selecionar os momentos caracterizados por uma complexa
intriga de relações sociais entre os personagens. Trata-se do maior número de
personagens necessários para garantir uma plausível sucessão de fatos
originados pela colocação do tema principal, apresentado nos vinte primeiros
capítulos, e a ser solucionado nos últimos. Desta forma, embora apreenda uma
porcentagem relativamente pequena de capítulos, o método Semana Composta pode
ser considerado adequado para os seus fins, sobretudo em virtude da abrangência
de dois tempos: o tempo de ficção e o tempo de transmissão. Há de ser
considerado ainda o objetivo da pesquisa, qual seja, detectar os elementos que
compõem a codificação icônica.
—
A ANÁLISE DOS DADOS
Os
capítulos analisados da novela Escalada, transmitida pela Rede Globo, mostraram
18 personagens em 14 cenários; a Rede Tupi apresentou na novela Meu Rico Português
41 personagens em 27 cenários. Estes dados, comparados entre si, revelam uma
concentração de personagens e cenários por parte da Rede Globo, e uma dispersão
por parte da Rede Tupi, o que significa que a novela Escalada proporciona ao
telespectador um melhor entendimento, relacionado a um menor esforço mental
para acompanhar a história.
Assim,
a Rede Globo visualiza em 65% das suas tomadas apenas um ou dois personagens na
imagem do televisor; a Rede Tupi, ao contrário, utiliza 54,1% das tomadas para
mostrar três ou mais personagens. O resultado imediato da redução da quantidade
de personagens na imagem do televisor consiste, pois, na facilidade da leitura
da imagem, proporcionando uma densidade de concentração de atenção.
E
por fim, a média de cada tomada da TV Globo é de 5,1 segundos; a TV Tupi tem,
como, média 11,6 segundos por tomada. A rapidez da montagem da imagem,
empregada pela Rede Globo, faz com que a atenção do telespectador seja
conduzida de um plano para outro sem este ter a preocupação de produzir energia
mental para seguir a seqüência dos fatos.
O
pouco movimento da câmera ou — em outras palavras — sua quase imobilidade, como
verifiquei na minha pesquisa de 1974, encontra na média de 5,1 segundos por
tomada uma explicação: a rapidez com que é efetuada o corte da imagem não torna
possível movimentar a imagem.
O
movimento cinematográfico e televisivo se caracteriza, como sabemos, pelo
movimento na imagem, pelo movimento da imagem, e pela conjugação destes dois: o
movimento na imagem que está em movimento. A rapidez de edição — imposta em
virtude de a televisão brasileira ser comercial, necessitando, como
conseqüência, de audiência para se sustentar — reduz o uso deste movimento, o
que resulta na mutilação da expressão pela imagem que, além do enquadramento e
ângulo, tem como propriedades as várias formas de movimento. A exploração
destas formas de movimento é substituída pela palavra, ou seja, pelo texto que,
por esta razão, se torna movimento!
A
articulação destes dados evidencia que a codificação icônica adotada pela Rede
Globo possui um ritmo apropriado ao estado físico e psicológico do trabalhador
de baixa renda, após um dia de trabalho monótono. A monotonia, pois, imposta
pelo tipo de trabalho realizado, resultando em gestos idênticos, é compensada
no momento do preencher o tempo não-trabalhado, por uma seqüência quase rítmica
de imagens que proporciona sua leitura imediata, em virtude da baixa informação
identificável no momento da transmissão. A evidência da imagem apresentada no televisor
não permite sua negação e, por esta razão, dispensa qualquer esforço, mesmo
físico, para o acompanhamento da história. Em outras palavras, existe uma
relação entre a codificação icônica da novela da Rede Globo e o estado físico e
psicológico do conjunto de telespectadores, o que permite afirmar que a
densidade da audiência encontra sua explicação, em parte, na composição rítmica
da imagem televisiva.
Esta
afirmação obtém maior consistência ao se verificar a fidelidade do conjunto dos
telespectadores em 1983, por ocasião de modificações administrativas da Rede
Globo quanto ao contrato de trabalho dos astros e estrelas prediletos do grande
público. A Rede Bandeirantes lança a novela Sabor de Mel com o slogan "até
o elenco da novela das 8 já mudou de canal" [JB 02.04.83]. A novela teve
curta duração. Mesmo com a promessa de prêmios e mais prêmios para quem
decifrasse o enigma central da história, a novela saiu do ar, melancolicamente,
após quatro meses de duração. A peça publicitária publicada no Jornal do Brasil
não deixa dúvidas sobre a qualidade artística ou o apelo popular do elenco da
novela Sabor de Mel:
"Sandra Bréa, Raul Cortez, Carmen Silva, Eva
Todor, Zaíra Bueno e até o costureiro Clodovil — grande arrecadador de Ibope —
fazem parte do elenco milionário contratado pela Rede Bandeirantes para Sabor
de Mel (...)" [JB 03.04.83].
Mesmo
quando profissionais — de grande experiência, reconhecida pela crítica
especializada (sic), como por exemplo Walter Avancini, que junto com Roberto
Talma dirigiu a novela Saramandaia de Dias Gomes, transmitida em 1976 —
"mudam de canal", os telespectadores não os acompanham.
Não
tanto para atualizar os resultados obtidos na pesquisa de 1975, mas sim para
verificar uma tendência, realizei junto com estudantes da PUC-RJ, em 1988,
outra pesquisa sobre a codificação icônica de novelas, utilizando o mesmo
método adotado em 1975. Estudamos as novelas Vale Tudo da Rede Globo, e Olho
por Olho da Rede Manchete.
O
quadro que segue, mostra que o número de personagens e dos cenários da novela
da Rede Globo, respectivamente, dobrou e quase triplicou. Mas,
concomitantemente, as tomadas com um ou dois personagens no vídeo aumentaram em
quase 145%. Existe, portanto, um equilíbrio: complicou-se, sem dúvida, por um
lado, a narrativa novelesca, devido a um número maior de personagens, mas, por
outro lado, este número é compensado pela concentração maior dos personagens no
vídeo, a saber, 93.7% das tomadas mostram, no máximo, dois personagens na
imagem.
quadro VI
|
GLOBO |
TUPI-MANCHETE |
||
|
1975 |
1988 |
1975 |
1988 |
personagens |
18 |
39 |
41 |
44 |
cenários |
14 |
37 |
27 |
56 |
1 ou 2 personagens em cena |
65% |
93,7% |
44,2% |
88,6% |
3 ou mais personagens em
cena |
35% |
06,3% |
55,8% |
11,4% |
média de tomada |
05,1" |
05,2" |
11,6" |
05,6" |
Verifiquei
esta excessiva concentração de personagens no vídeo só no momento da decupagem
icônica, pois ao assistir os capítulos da novela nos dias da sua transmissão, não
a tinha reparado, embora estivesse envolvido mais pelas atividades da pesquisa
do que pelas atuações de Maria de Fátima e Odete Roitmann, os maus elementos da
novela Isto me fez recorrer à análise mais detalhada dos dados obtidos em 1975,
e verifiquei que, neste ano, 15% das tomadas mostraram um só personagem no
vídeo, enquanto, em 1988, este resultado chega à porcentagem excessiva de
73,3%.
Este
dado me leva a concluir que o aumento dos cenários utilizados tem pouca
relevância no que diz respeito à inteligibilidade da leitura da imagem
televisiva, visto que a grande maioria dos planos empregados é ou "meio
plano" ou "close"; em outras palavras, o cenário exerce pequena
importância, na maioria das vezes, no momento em que se desenrolam os diálogos.
Ele é insubstituível quando a narrativa verbal está subordinada à ação, como
nos casos de assassinato, desastre de automóvel, flagrante de adultério etc.
Mais
outro dado chamou, particularmente, minha atenção: a média de tempo das tomadas
da novela da Rede Manchete. Ao assistir à novela Olho por Olho, tive a
impressão de uma demorada edição de imagens. Por isso, a média de 5,6 segundos
por tomada me surpreendeu. Por esta razão, decupei novamente os seis capítulos
gravados, conforme o critério de Semana Composta, e constatei que 5,2% do total
das tomadas cobrem 29,1% do tempo. São as tomadas que têm a duração de mais de
16 segundos, ou seja, aproximadamente três vezes a média. A novela Vale Tudo,
da Rede Globo comporta também tomadas mais prolongadas, mas estas ocupam 9,1%
do tempo total e 1,7% da totalidade das tomadas. Isto significa que no mesmo
espaço de tempo a TV Manchete gasta, aproximadamente, três vezes mais segundos
e três vezes menos tomadas do que a Rede Globo, o que resulta numa instabilidade
de ritmo, pois o pouco tempo que resta à TV Manchete é preenchido por um número
praticamente igual de tomadas. Tentarei exemplificar as particularidades da
codificação icônica das duas Emissoras. Vamos supor que cada capítulo da Globo
e da Manchete dure exatamente uma hora, ou seja, sessenta minutos. Assim a TV
Manchete gasta, então, 29 minutos para mostrar em cinco tomadas uma parte do
capítulo. Disto resulta que nos 31 minutos restantes, personagens e objetos se
congestionam em noventa e cinco tomadas. A Rede Globo, ao contrário, usa 9
minutos para menos de duas tomadas, de tal forma que restam 51 minutos para
noventa e oito tomadas. Percebe-se que o ritmo adotado na edição pela TV Globo
é bem mais equilibrado que o da Manchete, de tal forma que a câmera da Rede
Globo guia o olhar do telespectador exausto com tranqüilidade de
"plano" para "plano".
A
particularidade do ritmo de edição adotado pela Rede Manchete se deve, em mais
de 90% dos casos, às cenas externas. A gravação dessas cenas dá a impressão que
apenas uma só câmera está sendo utilizada. Assim, numa tomada totalmente aberta
e parada, um personagem se aproxima de outro; segue-se o corte, para dar início
ao diálogo entre os dois personagens, às vezes de longa duração, em meio plano,
com câmera também parada. Na novela da TV Globo, as tomadas de mais de quinze
segundos estão, na maioria das vezes, em função ou do merchandising — o tem a
musical sobressai durante alguns segundos — ou do drama. Assim, quando um casal
se encontra, após longo tempo de separação, a câmera em movimento focaliza, por
mais de 90 segundos, o diálogo entre os dois personagens. A direção de câmera
não quis separar o casal feliz, recorrendo às tomadas de "plano —
contra-plano". Em resumo, quando ocorrer a edição mais demorada, a TV
Globo procura visualizar sentimentos, ou seja, deseja evitar a separação na
imagem recorrendo ao costumeiro "plano — contra-plano", enquanto a TV
Manchete parece ser obrigada a recorrer a este tipo de edição por outras razões
cujo mérito não está em discussão, neste instante.
Parece-me
que a instabilidade do ritmo de edição característico à novela da TV Manchete,
não contribui para prender a atenção do telespectador de baixa renda. Ele, em
virtude das propriedades do mundo do trabalho, está esgotado física e
psicologicamente. Não contabilizando as tomadas de longa duração, a média de
tomadas da Rede Manchete é de 4,1 segundos. A falta de ritmo na imagem, ou
seja, na narrativa visual — mesmo sendo esta extremamente pobre em virtude do
exagerado uso do "plano — contra-plano" aliado ao "meio
plano" e "close", fazendo com que a leitura da imagem se dê
instantaneamente — não consegue superar a falta de energia "mental" —
devido ao cansaço do trabalhador — necessária para gerar a vontade de prestar atenção.
Em outras palavras, a codificação icônica da Rede Globo é mais coerente: o
ritmo impresso pela edição nas novelas analisadas nesta Rede, não é uma
necessidade imposta por exigências do discurso do autor da novela nem mesmo uma
questão da linguagem televisiva, mas sim uma imposição decorrente das condições
do mundo do trabalho do cidadão-telespectador.
—
DADOS COMPLEMENTARES
No
decorrer dos últimos anos, realizei análises semelhantes de outras telenovelas
e de séries brasileiras, com o intuito de atualizar os dados obtidos na minha
pesquisa de 1975. A oscilação verificada entre os dados deste ano com aqueles
apurados posteriormente, é mínima: a variação, por exemplo, da média de tomada
por segundo é de 0,4 segundos a mais ou a menos. Por esta razão iniciei em 1981
uma pesquisa sobre o telejornalismo — ainda não terminada — com o intuito de
conhecer as características da codificação icônica desses programas. O que nos
interessa neste momento, para análise, é o Jornal Nacional da Rede Globo de
Televisão que sempre acusa um maior número de televisores ligados.
Devo
observar, porém, que nem sempre a quantidade de televisores ligados, registrada
pelo IBOPE, corresponde a uma audiência da mesma grandeza:
"O diretor de marketing da COFAP (Confederação de
Autopeças) referiu-se à descoberta feita pelos pesquisadores da agência de que
apenas 18% dos telespectadores ficam atentos à TV na hora dos programas
jornalísticos" [JB 01.07.83].
Menciono
ainda outro dado detectado na minha pesquisa sobre os telejornais. Os
intervalos na transmissão destes telejornais se caracterizavam, naquela época,
de um lado por mensagens publicitárias exclusivamente dirigidas a camadas
sociais de renda alta, tais como anúncios de automóveis e serviços bancários,
e, de outro lado, pela total ausência de informações relativas à programação
televisiva da mesma noite ou do dia seguinte, como é costume nos intervalos
comerciais dos demais programas. A explicação deste fenômeno podemos talvez
encontrar na afirmação do animador Chacrinha, dada em 1971 numa entrevista na
Rede Tupi: "O Jornal Nacional é um misto quente. O povo só come o pão; não
tem dinheiro para comprar presunto nem queijo". Ele contestava não o
número de televisores ligados, fornecido pelo IBOPE, mas sim a real audiência
do Jornal Nacional.
Neste
telejornal da TV Globo detectei a existência de trinta modalidades na
transmissão de notícias. Esta variedade de modalidades se origina nas formas
diferenciadas da conjugação da voz à imagem, acompanhadas ou não por ruídos
ambientais. A título de exemplo, menciono a modalidade de uma entrevista numa
língua estrangeira transmitida via satélite com tradução simultânea feita no
Brasil, complementada com ruídos ambientais (ruídos de manifestação, terremoto
etc.) também transmitidos via satélite.
Quadro VII
modalidades de interrelação de imagem-voz
|
imagem |
voz |
1 |
locutor |
estúdio |
2 |
locutor e cromaqui |
estúdio |
3 |
locutor e animação |
estúdio |
4 |
reportagem |
estúdio |
5 |
reportagem |
repórter em off |
6 |
reportagem |
entrevistado em off |
7 |
reportagem |
ruídos originais |
8 |
reportagem via satélite |
estúdio |
9 |
reportagem via satélite |
repórter em off |
10 |
reportagem via satélite |
repórter |
11 |
reportagem via satélite |
ruídos originais |
12 |
foto |
estúdio |
13 |
desenho |
estúdio |
14 |
mapa |
estúdio |
15 |
mapa com foto do repórter |
repórter em off |
16 |
cartela |
estúdio |
17 |
cartela animada |
estúdio |
18 |
arquivo |
estúdio |
19 |
entrevistado via satélite |
entrevistado |
20 |
arquivo via satélite |
repórter |
21 |
repórter no local |
repórter |
22 |
repórter no local |
entrevistado |
23 |
repórter no local via
satélite |
repórter |
24 |
entrevistador no estúdio |
entrevistador |
25 |
entrevistado no estúdio |
entrevistado |
26 |
entrevistado no local |
estúdio |
27 |
entrevistador via satélite |
entrevistador |
28 |
entrevistado via satélite |
entrevistado |
29 |
Entrevistado via satélite |
fala original com tradução
simultânea |
30 |
entrevistado |
repórter |
Estas modalidades foram empregadas no Jornal Nacional da Rede Globo, nos dias 21.04, 29.04, 07.05, 16.05, 22.05 01.06.81.
Assim,
o Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão, no dia 10 de junho de 1981, transmitiu
ao todo 24 notícias, e nesta transmissão utilizou 13 destas modalidades. O
tempo necessário para a transmissão das 24 notícias foi de 17 minutos e 55
segundos, ou seja, cada notícia levou, em média, 44,7 segundos. Em relação ao
número de tomadas, constatei que, em geral, cada notícia tinha quase sete
tomadas, o que significa que, em média, foram utilizados 6,4 segundos por
tomada. E, por sua vez, cada modalidade de transmissão comportou, em média 12,7
tomadas.
Em
1986, para verificar uma eventual modificação na codificação icônica do Jornal
Nacional, realizei um levantamento do mesmo gênero, sem constatar, entretanto,
oscilações significativas.
Os
dados quantitativos da análise do Jornal Nacional do dia 10 de junho de 1987
são os seguintes:
quadro VII
Tempo total de transmissão: 37'17" — 100%
Tempo real (sem intervalo): 26'35" — 71,3%
1º bloco: 6'19" — 04 notícias — 39 tomadas
2º bloco: 3'32" — 04 notícias — 45 tomadas
3º bloco: 8'19" — 07 notícias — 77 tomadas
4º bloco: 8'25" — 14 notícias — 67 tomadas
total: 29 notícias — 228 tomadas
Ao
analisar os dados que constam neste quadro, detecta-se que, a Rede Globo
dedicou, em média, 55 segundos a cada notícia e que cada notícia é composta, em
média, de 7,9 tomadas.
Ao
comparar os dados obtidos no levantamento da codificação icônica das novelas e
do Jornal Nacional, verificamos uma constante: uma montagem de alta velocidade,
o que confirma, no meu entender a existência de uma correlação entre o estado
físico e psicológico do trabalhador de baixa renda e a alta preferência da
audiência pela programação noturna da Rede Globo de Televisão.
Eventualmente
poder-se-ia objetar que é própria à linguagem televisiva esta
"rapidez" na edição. Nada é menos verdadeiro, pois os telejornais
europeus, por exemplo, não seguem este mesmo estilo. Lá, a quantidade de
informação é menor, mas se ganha em profundidade. Parece-me que o TJ Brasil do
SBT adotou este mesmo estilo. Testes que realizei tanto com pessoas de baixa
renda quanto com estudantes universitários mostram com clareza que
aproximadamente 70% das informações do Jornal Nacional não são absorvidas,
exatamente em virtude do ritmo acelerado na edição, que impede o aprofundamento
das notícias transmitidas.
Por
fim, um esclarecimento é oportuno a fim de evitarmos o determinismo social.
É
evidente que a Rede Globo não pensou maquiavelicamente este esquema de
codificação icônica que acabei de analisar. Conversas que tive com funcionários
desta Rede, já em 1975, esclareceram que quase a grande maioria dos técnicos
envolvidos na produção fez escola na TV Tupi, onde americanos, no início da
década de cinqüenta, ensinaram "como fazer televisão". Diretores da
área de produção de novelas de outras Emissoras e também atores chamaram minha
atenção por uma explicação plausível deste uso abusivo de "plano e
contra-plano": seria em decorrência do processo industrial de produção de
novelas que ocasiona o pouco tempo disponível para o ensaio, o que obriga os
diretores a recorrerem ao "plano e contra-plano" em demasiado. Por
outro lado, entretanto, a crescente concentração de personagens no vídeo, além
da rapidez da edição, permitem admitir que aquilo que se denomina de estilo
televisivo, hoje se tornou "marca registrada". Nesta perspectiva é
significativo o que o jornal O Globo registrou no início da novela O Outro:
"A cúpula global decidiu que os capítulos de O
Outro precisam de mais ação. Daí que eles estão sendo reeditados tornando-se
mais compactos e dinâmicos" [28.03.87].
Observa-se
que ação há de ser entendida por edição veloz na imagem sem movimentos, como já
afirmei.
Contudo,
parece-me que o conjunto destes dados apresentados — além de necessitar
pesquisas complementares — ainda não configura uma explicação definitiva, caso
seja possível, da densidade de audiência televisiva à noite, e a preferência
predominante pela Rede Globo de Televisão. No meu entender, falta ainda estudar
a espinha dorsal da programação noturna desta Rede, ou seja, uma análise da
narrativa novelesca, que ocupa aproximadamente 60% do tempo no horário
considerado nobre.
A
TELENOVELA
A
narrativa de maior sucesso da programação televisiva hoje é, sem a menor sombra
de dúvida, a novela, como também acontecia nos tempos áureos do rádio. Aliás,
independente dos seus vários gêneros (os tradicionais instrumentos para modular
o inconsciente), a narrativa, na sua forma seja de documento, seja de ficção,
data de tempos longínquos. Primeiro na sua forma oral, seguida pela escrita e
hoje radiofônica, cinematográfica e sobretudo televisiva — sem que uma elimine
a outra — a narrativa sempre constituiu o instrumento mais popular para
transmitir fatos e acontecimentos. Permite, através da identificação com os
heróis, canalizar o desejo, aquilo que não existe, mas seria bom que existisse.
Nesta
perspectiva, a telenovela desempenha uma função social. Ao se organizar
mediante representações simbólicas e a partir de dados provenientes do real, a
novela constrói um mundo "sui generis". Este mundo está regido por
leis, como toda a vida do homem se organiza em base de regras e normas. O
trabalho está regulamentado, o jogo, a vida social e assim também o campo
simbólico. Uma das regras, talvez a mais marcante, é que a narrativa transmite
concomitantemente o real e a ficção, o acontecimento e a imaginação, o fato e o
desejo, sem entretanto permitir qualificar de mentiroso aquele que a apresenta.
E a sua norma mais exigente é fazer com que o herói sobreviva,
independentemente das suas qualidades morais. Foi assim que Sinhozinho Malta
levou a viúva Porcina, na novela Roque Santeiro, para serem felizes para
sempre, atendendo às normas do melodrama popular e desagradando as
interpretações mais ideológicas.
O
imaginário e o simbólico confluem na construção de uma realidade com
características próprias, que pouco tem a ver com o dia de trabalho monótono,
repressivo e exaustivo, o que permite liberar os desejos e a agressão — causada
pelo mundo do trabalho — mediante os mecanismos mais variados e extremamente
complexos de identificação. Esta liberação, que desde os gregos se denomina
catarse, faz esquecer, ao levar ao mundo de representações, as repressões,
principalmente as econômicas. O multicolorido, a abundância do vestuário e dos
cenários e a fartura dos alimentos e das decorações, em resumo, a opulência da
imagem preenchem o vazio sempre presente nas casas dos trabalhadores de baixa
renda.
O
caráter doméstico do televisor, o seu uso familiar e a sua utilização integrada
no mundo do trabalho, por sua vez contribuem ainda mais para o sucesso da
telenovela, cujo conteúdo faz aproximar o mundo da ficção do mundo cotidiano, e
vice-versa.
Esta
aproximação entre o mundo real e a ficção conhece duas modalidades, uma
temática e outra temporal. Esta última teve pela primeira vez seu clímax na
novela Sol de Verão, em que festas religiosas e civis tais como Natal e
Carnaval, do calendário oficial, coincidem com os acontecimentos da ficção. A
modalidade temática consiste na abordagem de acontecimentos da atualidade, tais
como a ocorrência de greves como ocorreu na novela Vereda Tropical, e a
tributação de cavalos na novela Que Rei Sou Eu?, parodiando o selo obrigatório
para os automóveis poderem traficar nas rodovias federais.
A
todos estes argumentos, que, em última análise, evidenciam os elementos que constituem
o padrão global, pode se opor o enfoque de que a TV Globo surgiu numa época em
que a televisão ainda não tinha grande penetração nas camadas de baixa renda, e
que, na medida em que o televisor se popularizou, ela conseguiu, no decorrer
dos anos, acostumar o crescente público telespectador a ver ou a assistir à TV
Globo, eliminando gradativamente as outras Emissoras de TV.
Ainda
outros argumentos podem ser apresentados, tais como a política de estrelismo da
TV Globo e, na década de setenta, o total apoio ao Governo Militar, que lhe
rendeu favorecimentos, e, "last but not least", o capital estrangeiro
nela investido em seu início.De certo, todos estes elementos contribuíram para
o estado televisivo atual, que não deveria ser necessariamente este.
O
estado televisivo caracterizado pelo padrão global, acostumou, sem dúvida, a
massa de telespectadores a sintonizar seu televisor na programação da TV Globo
não porque "ipso facto" gosta mais desta, mas sim por esta se adequar
mais ao estado físico e de espírito desta massa de telespectadores, resultante
das características do mundo brasileiro do trabalho. As demais Redes de
Televisão somente conseguirão conquistar uma fatia maior de audiência na medida
em que substituírem a sua atual referência, à programação da TV Globo, por uma
outra, qual seja, o cotidiano das camadas sociais de baixa renda.
Com
esta afirmação conclusiva, resultado da articulação dos elementos que compõem o
mundo do trabalho com as características dos componentes da programação global,
torna-se necessário analisar a realização da produção da mensagem televisiva.
Isto porque atores sociais envolvidos no processo de comunicação, acima
analisados, ocupam posições diferenciadas, ou seja, impõem-se detectar com mais
precisão, os atores sociais presentes nesse processo e caracterizar o papel de
cada um.
5. O TELESPECTADOR-CIDADÃO
Ao
indagar por que o cidadão brasileiro de baixa renda se tornou um telespectador
assíduo nos dias úteis, à noite, vimos que em virtude das condições de trabalho
e das características da programação televisiva noturna no Brasil, só resta à
população de baixa renda, após um dia de trabalho exaustivo, assistir à
programação da Rede Globo, por esta se adaptar, no nível da codificação
icônica, ao estado físico e psicológico deste cidadão.
Com
esta afirmação categórica, de certo, está criada uma polêmica, pois, em última
análise, sugere-se que nas mesmas condições, as mesmas causas produzem os
mesmos efeitos. Pode-se, entretanto, admitir que, caso todas as seis Redes de
Televisão tivessem uma programação com características idênticas àquelas da TV
Globo, o estado televisivo brasileiro seria outro, ou seja, as mesmas condições
do mundo do trabalho resultariam em uma audiência proporcionalmente diversa.
Não se pode perder de vista, pois, que a tendência monopolizante da qual
comumente se acusa a Rede Globo, não tem tanto sua origem nesta Emissora, mas
na preferência da audiência a cujas condições físico-psicológicas a TV Globo se
ajustou.
E
pertinente observar que até o presente momento raramente falei dos programas
que compõem uma programação televisiva, e, pela lógica, também, não afirmei que
o telespectador gosta dos programas a que assiste. Assinalei somente que este
dá preferência à programação noturna da TV Globo devido às suas
características.
E
legítimo observar que nesta preferência implicitamente está sendo tratada a
questão do gosto, pois o telespectador escolhe o melhor entre os melhores, ou
melhor entre os piores programas. Não existe uma terceira alternativa, a não
ser desligar o televisor. Esta alternativa, porém, não está em debate por
desejarmos saber a razão pela qual o cidadão de baixa renda prefere a
programação da Rede Globo.
A
afirmação de que o cidadão de baixa renda escolhe o melhor entre os melhores,
ou o menos chato entre os piores programas, é discutível, pois a audiência
noturna da TV Globo, nos dias de semana, se apresenta bastante estável, como já
constatamos. Vale, de certo, para a programação dominical, pois neste caso
existe uma concorrência razoavelmente equilibrada entre as cinco Redes de
Televisão comercial, o que indica que o telespectador escolhe um entre vários
programas, como comprova uma informação do Jornal do Brasil, sob o título
"Azarão no páreo — Manchete rouba luta entre Faustão e Sílvio":
"Pelo menos das 18h às 18h30min de domingo, a
Manchete conseguiu mais uma vez o lugar de 'azarão' na disputa pela audiência
do Rio entre o Domingão do Faustão, da Globo, e o Programa Sílvio Santos, da
TVS. Os 39 pontos do jogo Vasco e Fluminense bateram neste horário os 29 do
Faustão e os 9 de Sílvio Santos. A Copa Rio, dois jogos consecutivos (Botafogo
e Cobofriense, às 16h, e Vasco e Fluminense, às 18h), enfrentou a badalada
estréia da Globo com bons índices de audiência também no período de 16h30min às
17h (25 pontos contra 29 da Globo e 6 da TVS), e de 17h30min às 18h (28 contra
33 da Globo e 6 da TVS). Os números confirmam ainda uma esmagadora vitória da
Globo contra a TVS, com a audiência máxima de 48 pontos de 15h30min às 16h,
contra 10 da TVS. O ponto alto da TVS não ultrapassou os 15 pontos, de 15h às
15h30min e de 16h30min às 17h" [JB 29.03.89].
Entretanto,
pode-se admitir que existe uma correlação entre a preferência dada a uma
programação e os índices de audiência auferidos pelo IBOPE. Caso a programação
noturna da Rede Globo fosse composta por programas de preferência exclusiva,
acima de qualquer outra, não teria sentido, por exemplo, a disputa pela
exclusividade de transmissão de eventos esportivos.
Seguindo
esta linha de raciocínio, é permitido afirmar que a posição hegemônica da TV
Globo aparenta mais do que é. Esta constatação permite concluir que o
telespectador tem um poder de barganha, e por isto é necessário analisar a
correlação de forças entre os atores sociais que atuam na TV comercial.
Ao
se tornar um telespectador assíduo, o cidadão de baixa renda, de certo, procura
satisfazer uma necessidade que o motiva a escolher um programa.
Quase
todos os autores atribuem aos Meios de Comunicação de Massa a função de atender
a necessidade de informação, formação e de entretenimento. Os publicitários
acrescentam mais outra, a de divulgação.
Entretanto,
no momento em que se procura definir cada uma destas funções, as
características se entrelaçam. Ao tratar dos aspectos da produção da mensagem,
Gerhard Maletzke escreve:
"No que diz respeito à intenção de ordem
objetiva, o comunicador visa a obter determinados efeitos no receptor. Estes
efeitos intencionais conhecem sete categorias. O comunicador visa a entreter,
diminuir a tensão e distrair o receptor; transmitir, valores estéticos,
oferecer satisfação artística; envolver o receptor emocionalmente, induzi-lo à
virtude; oferecer informações, ensinar-lhe fatos atuais e úteis; influenciar
nas opiniões e na conduta do receptor; provocar atos" [1963: 91].
Neste
sentido, um programa de entretenimento comporta necessariamente elementos
informativos, e visto que se impõe uma seleção entre os elementos informativos
disponíveis, os critérios que orientam a escolha estão de forma direta referenciados
a um quadro axiológico, de tal maneira que as fronteiras entre informação,
formação e entretenimento estão amalgamadas. A crítica feita por José Carmos
Avelar ao filme "Terremoto", deixa evidente esta mescla de intenções:
"Nos filmes onde parece existir somente a
intenção de divertir a platéia com estímulos visuais e sonoros, onde
aparentemente existe apenas um brinquedo para levar as pessoas a repousar e
deixar de pensar, é que as idéias passam com maior eficiência, sem serem
percebidas (sic). E por isto mesmo os vários dramas particulares desenvolvidos
em torno de terremoto é que são importantes, apesar da atenção despertada pelos
vistosos e ruidosos efeitos especiais. Eles dão um sentido ao espetáculo,
porque confirmam preconceitos e clichês populares (sic)" [JB 25.06.75].
Aliás,
todos os estudos de conteúdo de mensagens, mesmo daquelas que visam a
proporcionar entretenimento, transmitidas pelos meios de comunicação de massa,
comprovam que estas se referem a um quadro de valores de forma explícita.
Ao
tentar detectar a necessidade que o telespectador deseja satisfazer, assistindo
à televisão, do ponto de vista da tríplice função atribuída aos Meios de
Comunicação de Massa, impossível, portanto, é avançar. Em última análise, pois,
ao distinguir estas funções, trata-se da forma e não do conteúdo.
Por
outro lado, possuindo qualquer necessidade um elemento subjetivo, é legítimo
afirmar que o telespectador procura na novela satisfazer sua necessidade de
entretenimento, no telejornal a de informação e num programa de entrevista a de
formação. Ou seja, o elemento subjetivo do telespectador se caracteriza pela
expectativa. Ele procura não no conteúdo, mas na forma, satisfazer a uma
necessidade.
De
início pode-se distinguir duas formas nos programas televisivos: a ficção e o
documento. A ficção é definida por Tomás Gutiérrez Alea como "histórias
totalmente criadas a partir de uma idéia preconcebida e desenvolvida na base de
princípios dramáticos" [1984: 34]. O programa documental comporta a
atualidade entendida como a mediação direta com a vida real, seja planetária ou
não, ou seja, o hic et nunc.
Vale
mencionar, neste contexto, as formulações usadas nos telejornais, tais como
"Testemunho ocular da história", da TV Tupi, e "Cobertura
completa" da Rede Globo, além dos logotipos da Rede Bandeirantes, o Olho,
e da Rede Globo, o globo reproduzido pela televisão/televisor da Globo.
A
denominação documental é utilizada, portanto, na sua concepção utilitária, ou,
a formulação de J. de Broucker: "Um mapa de navegação no qual se procura,
entre as bancas flutuantes de areia, o canal por onde navegar seu barco"
[1971: 277].
Ao
estruturar uma programação, o empresário de uma Rede de Televisão tem como
principal objetivo satisfazer a expectativa — diga-se, de passagem, subjetiva —
do telespectador mediante um dos programas que comportam os mais variados
gêneros tradicionais, tais como o melodrama e a comédia, nos quais o
espetacular obtém seu devido peso. Estes gêneros, que desde a antiguidade
moldam a narrativa popular, como afirma Walter Benjamim, hoje foram apropriados
pelos meios de comunicação de massa na observação de Desidério B. López:
"Os meios de comunicação coletiva se apropriaram
dos gêneros tradicionais e criaram outros novos para controlar o inconsciente
coletivo do nosso tempo. O jornalismo desenvolveu o folhetim e a crônica marrom
e policial. O cinema ampliou o gama dos gêneros de forma surpreendente,
constituindo-se na máquina mais poderosa para modular a libido social: o
bangue-bangue e o policial, a comédia e o cinema de aventuras, o melodrama e os
filmes de guerra, o cinema cômico, burlesco e do absurdo. Por sua vez, a
televisão e o rádio adaptaram os gêneros cinematográficos, impondo-lhes suas
condições específicas de produção" [1981: 5].
Nesta
perspectiva, fica evidente que a cultura de massa é uma deformação da cultura
popular, como afirma J. Martín Barbero:
"A cultura de massa não é a simples divulgação da
cultura culta, mas sim a deformação da cultura popular. (...) O que está sendo
explorado são matrizes que vieram, historicamente, de muito longe, e através
das quais o imaginário popular se torna cúmplice da dominação massiva. Vocês
sabem que não existe dominação sem cumplicidade e sedução entre o dominador e o
dominado" [1984: 23].
A
partir desta cumplicidade e sedução estão estruturados os programas televisivos
e o seu apelo popular.
Necessário
é saber como e de que maneira se processam e se articulam, na estrutura do
programa televisivo, esta cumplicidade e sedução.
Por
ser comercial a televisão, e por conseguinte, necessitando de audiência, o
empresário de uma Rede de Televisão não pode negar, impunemente, o que está
enraizado na denominada "alma do povo", ou seja, no sentimento, na
vivência humana que, como observa Desidério B. López,
"nunca é absolutamente individual: somente a
experiência de tal vivência o é, mas sua estrutura, seu conteúdo e seus efeitos
são sempre sociais. Por esta razão a grande ressonância que esta obtém nos
grandes públicos" [1981: 5].
Sendo
a narrativa, nos seus mais variados gêneros, algo anterior ao sistema que rege
hoje a vida material, esta incorpora ainda práticas e modos de percepção
estranhos a este sistema. Com a passagem de um sistema econômico para o outro,
características de um se incorporam ao outro, pois nunca haverá uma ruptura
brusca, embora haja conflitos. É através desses conflitos que uma sociedade
vive suas relações contraditórias com o passado. Os progressos materiais
trazidos por um novo sistema exercem pressão sobre as mentalidades. Por esta
razão, estas se transformam, o que provoca o conflito com a tradição, ou seja,
as transformações quantitativas iniciam um lento processo de ordem qualitativa.
Nesta
perspectiva, a estrutura de um programa televisivo, ao incorporar um dos
gêneros da narrativa, reflete o conflito, a relação passado/presente. Nas
novelas, por exemplo, trata-se dos conflitos entre as gerações e, em relação
aos programas humorísticos, é pertinente apontar o quadro da velhinha em Veja o
Gordo, a professora Salomé em Chico Anísio Show, e a velhinha surda em A Praça
é Nossa.
O
conflito entre o passado e presente não é a única forma de estruturação do
programa televisivo. Há um outro tipo de conflito, com outras características,
embora articulado com o primeiro.
Somente
é possível contornar, atenuar ou resolver o conflito entre o passado e o
presente ao mostrar os benefícios materiais que este último traz. Esta
justificativa se processa necessariamente mediante representações simbólicas,
tais como felicidade e bem estar, empregadas também nos programas televisivos.
Ao
desfrutar um programa televisivo, o telespectador contempla uma realidade
fictícia, que, mesmo tratando do conflito entre presente e passado, pouco tem a
ver com as condições de trabalho e, por extensão, de moradia. A ostentação de
felicidade e bem-estar, tratada simbolicamente, contradiz, portanto, o real, o
que faz com que a articulação entre a ficção e o real não alcance a
verossimilhança necessária para a credibilidade, que é um dos mecanismos para
garantir a audiência.
Neste
instante é pertinente observar que o assistir à televisão não é um ato isolado;
ele está diretamente inter-relacionado com o mundo do trabalho, como vimos
anteriormente; é um dos demais atos que compõem o cotidiano. No momento em que
este inter-relacionamento dos atos que compõem o cotidiano é bruscamente
negado, ou seja, quando não se constrói uma ponte entre o mundo do trabalho e
as representações simbólicas de felicidade e de bem estar, a fim de justificar
os benefícios do presente, a possibilidade de atender à expectativa do
telespectador se reduz, o que afeta a densidade de audiência. Por esta razão,
há de ser atenuada a discrepância entre o real e a ficção. Isto se torna
possível ao se tratar de elementos que compõem o mundo do trabalho, ou, em
outras palavras, ao se introduzir o descontentamento gerado pelo mundo do
trabalho. Ao se tratar da insatisfação com a situação política, econômica e
social, está presente o real que, articulado com a felicidade e o bem-estar da
ficção, estrutura o programa televisivo mediante um dos gêneros da narrativa.
Desta maneira a expectativa em relação a um programa é satisfeita: contempla-se
a vida cotidiana mediada pela ficção.
Assim,
na novela Cavalo de Aço, trata-se da expulsão de posseiros "que há mais de
20 anos labutaram nessas terras"; em Escalada, é denunciado o fato de que
empresários financiam as campanhas eleitorais de deputados; em Os Gigantes,
revela-se a prática de "dumping" por empresas transnacionais; em
Sétimo Sentido, fala-se do desespero de trabalhadores desempregados e da greve;
em Roda de Fogo, empresários são acusados de formar "lobbies" para
forçar um candidato à presidência da República; em Mandala, um líder operário é
morto por ocasião de uma greve; e em O Salvador da Pátria, empresários e um
líder sindical procuram fazer a cabeça de um bóia-fria, sem falar ainda da
corrupção na polícia e tráfico de drogas.
Nesta
perspectiva, explicita-se que, usando a formulação de J. Martín Barbero, não há
dominação sem cumplicidade e sedução entre dominado e dominador. Os elementos
da narrativa popular e a mesclagem de elementos tirados da vida cotidiana
articulados com o quadro axiológico dominante, constituem uma condição sine qua
non para o empresário de uma Rede de Televisão garantir a audiência.
Quando,
no início da década de oitenta, as camadas de baixa renda começam, de forma
decisiva, a participar do momento político — lembre-se, por exemplo, da
campanha "Diretas Já", como também o avanço do Movimento Popular — o
Jornal do Brasil noticia:
"Quem achar que índice de audiência é o melhor
termômetro da televisão, errou. Eles dizem, por exemplo, que as novelas
brasileiras navegam em mar de rosas. Puro engano. Apesar de encantar platéias
daqui e de além-mar, a telenovela passa por momentos difíceis, crise das mais
bravas. (...) Faltam idéias. Faltam escritores treinados na arte de produzir
quilos de laudas por dia. costurando idéias com tal mestria que o telespectador
acredite nas artimanhas cotidianas de um diabo" [JB 24.03.85].
Foi
por isso que no início da década de oitenta surgiu a idéia de fundar um centro
de estudos que, posteriormente, recebeu o nome de "Casa de Criação Janete
Clair".
Em
outras palavras, é a própria contradição que caracteriza um programa televisivo
e sua estrutura, contradição esta que se impõe e que resulta na fragilidade do
"estado televisivo" brasileiro. Sua audiência vive a discrepância na
distribuição de renda, oriunda da subordinação do sistema capitalista
brasileiro à metrópole capitalista. Esta fragilidade se caracteriza por
conseqüências imprevisíveis. Assim, em 1985, o Jornal do Brasil anuncia que
"a luta de classes chegou à mídia eletrônica" quando usineiros e
trabalhadores rurais da Zona da Mata pernambucana fizeram propaganda no horário
nobre da Globo, por ocasião do dissídio coletivo. A FETAPE, Federação dos
Trabalhadores da Agricultura de Pernambuco, anuncia, tal como em um intervalo
comercial:
"Este ano, os camponeses exigem salários de Cr$
762 mil 449. Não é nada, perto do lucro dos patrões. Mas o mínimo para que
continuem vivos" [JB 22.09.85].
Sendo
comercial, pois, a televisão há de anunciar tanto durante os intervalos
comerciais quanto nos seus programas mediante o merchandising, os últimos lançamentos
para o mercado interno. Por ser comercial, afirma Dionísio Poli:
"(...) a única receita da televisão é a
publicidade. (...) A receita da publicidade é obtida através da comercialização
de uma coisa chamada tempo em televisão" [1979: 26].
Este
tempo é a mercadoria colocada à venda pelo empresário de uma Rede de Televisão.
Esta
mercadoria, entretanto, possui uma característica "sui generis", pois
sua qualidade — expressa em termos quantitativos pelos índices de audiência —
não lhe acrescenta um valor a mais, mas sim faz com que a lei da oferta e
procura propicie ao empresário, dono da Rede, elevar seu preço. Por esta razão,
Dionísio Poli pode afirmar:
"Entretanto, no que a televisão vende isto não
existe: o tempo não se guarda: o que condiciona toda a economia da televisão no
mundo. (sic) Este é o fato que faz com que a economia da televisão seja
fundamentalmente diferente de outras atividades industriais ou comerciais, ou
até mesmo de outras empresas de serviço, porque ela lida com o único produto
que é irrecuperável e totalmente perecível — não dá para ser guardado"
[1979: 26].
Para
contornar esta fragilidade da televisão comercial, concessões devem ser feitas,
pois, como afirma Antônio Gramsci: "nenhuma sociedade se propõe a
solucionar tarefas quando as condições necessárias são inexistentes"
[1978: 51].
Por
não ter, na prática, outra opção para preencher seu tempo não-trabalhado a não
ser vendo ou assistindo a televisão, as camadas de baixa renda não satisfazem
as expectativas geradas pela sua insatisfação com o político, o econômico e o
social somente com temas ligados apenas ao melodrama. Esta insatisfação deve
estar incorporada ao cotidiano do qual estar à frente do televisor faz parte
integral. Somente nesta perspectiva torna-se compreensível a crítica e a
denúncia nos programas televisivos de ficção. Parece-me até que desta maneira
surgiu, na televisão brasileira, um novo gênero de melodrama, qual seja, o
melodrama-documentário.
Esta
política adotada pelo empresário de uma Rede de Televisão gera quatro
conseqüências:
- atende à expectativa do telespectador;
- garante uma densidade de audiência necessária para
que o empresário de uma Rede de Televisão assegure, ao menos, o retorno do
capital investido;
- permite, mediante a divulgação de mercadorias e
serviços nos intervalos comerciais e através do merchandising, que os demais
empresários escoem sua produção;
- o que, por sua vez, ainda lhes possibilita indicar
caminhos a serem percorridos pela audiência, em vista de solucionar problemas
relacionados ao seu cotidiano, ou seja, está garantida a propagação dos valores
das classes dominantes.
A
articulação destes interesses estrutura um programa televisivo de ficção, como
a análise de um capítulo da novela Sétimo Sentido evidencia a seguir:
"Na noite de 23 de setembro de 1982, a Rede Globo
de Televisão mostrou ao povo brasileiro Dona Santinha, empresária de um
complexo industrial, informando a seus filhos que Tião Bento era irmão deles.
Foi mais um capítulo da novela 'Sétimo Sentido'.
Antes deste episódio, houve uma cena com os três
filhos Rivoredo — Rude, Sandra e Tony —, num quarto de dormir, conversando sem
dizer nada de importante. Ao mesmo tempo, a Rede Globo ressalta a masculinidade
de Rude, elegante dos pés a cabeça em um roupão. Sandra está vestida com um
peignoir cor-de-rosa, que procura esconder os contornos do corpo. E por fim
Tony, o filho mais novo, encostado a uma mesa, também de roupão, só que com
cores adequadas a um garotão. O telespectador vê a porta se abrir. Entra Dona
Santinha. Talvez o verbo entrar seja por força de expressão, pois Dona Santinha
não entra. Ela desliza lentamente sobre o tapete, expondo aos olhos de milhões
de telespectadores a sua veste noturna, cor de rosa. Embora o ambiente seja de
tensão, os personagens não elevam a voz, gesticulam com moderação, e, ao se
falarem, usam palavras bonitas, sem agressão. Em uma só palavra, parece que
estamos presenciando uma aula de etiqueta, de cultura, de comportamento à
altura de um Brasil desenvolvido. A mesma novela mostra que nem todas as
camadas sociais já alcançaram este padrão de civilização. Quando aparece no
televisor o apartamento da personagem Giza, a porta do banheiro sempre está
aberta, a cama sempre desarrumada, não há sequer cadeira para se sentar. Os visitantes
devem bater à porta para se anunciar, pois a campainha não funciona. E Giza, a
moradora do apartamento, sempre grita. E como! Aliás, é seu estilo de vida. Usa
gíria, usa gestos desproporcionais, está sempre descabelada e sua maquilagem
acentua mais ainda que ela não chega nem aos pés da cultura da família
Rivoredo. E as irmãs de Giza? São outra coisa, oposto de Giza. Vestem-se bem,
não dão gargalhadas estrondosas, maquilam-se moderadamente, sempre educadas.
São assalariadas como foi Giza. Mas esta meteu-se em encrencas. Organizou uma
passeata contra os patrões. Liderou uma greve. Acampou em frente ao palacete da
família Rivoredo. E perdeu o emprego. As irmãs dela são mais responsáveis.
Procuram fazer sempre suas obrigações. Tratam com carinho seus chefes e chamam
a Diretora-Presidente da empresa pelo nome. Aliás, a casa onde elas moram com o
pai viúvo, sempre está bem arrumada. Todas as coisas ficam em seus devidos
lugares, como no palacete dos Rivoredo. E tem mais. A irmã, secretária das
empresas Rivoredo, encontrou o seu príncipe encantado, embora ela tendo um
defeito físico. Giza não. Alguns dias após ter conquistado o médico, este é
assassinado" [Tilburg: 93].
Esta
descrição que se limita aos componentes visuais, revela as características dos
papéis sociais dos três atores envolvidos na atividade de assistir à televisão,
a saber, a audiência, o empresário de uma Rede de Televisão e os empresários da
indústria, sobretudo de bens duráveis. Há de ser observado, entretanto, que
existe um desequilíbrio no que diz respeito ao poder de barganha de cada um
destes atores, como explico a seguir.
Não
há a menor dúvida sobre a qualidade da proposta embutida na descrição acima em
relação à defesa de um modelo de sociedade. Também não há dúvida de que tudo
aquilo que contradiz esta proposta, é tratado em função de justificar por que
este modelo não se concretiza plenamente. Não é sem razão que a personagem Giza
é demitida. Também não é sem razão que o noivo dela é assassinado, e há de ser
enfatizado que, em nenhum momento, a história justifica este assassinato. Em
outras palavras, a morte do noivo só poderá ser entendida como sendo o
resultado de uma intervenção de um justiceiro externo. Detecta-se aqui os
interesses daqueles que detêm maior poder de barganha. Entretanto para poder
defender este modelo de sociedade e justificar suas falhas, impossível é não
mostrar a atuação do terceiro ator social, o assalariado — a maioria da
audiência televisiva — que, na citada novela, organiza uma greve, uma passeata
e um acampamento em frente ao palacete dos proprietários da indústria
alimentícia. É pertinente observar que na época a ficção retratava uma situação
real: os professores de 1° e 2° graus de Curitiba estavam acampados em frente à
sede do governo estadual, reivindicando melhores salários.
Os
índices de audiência revelam que a estrutura de um programa televisivo, como o
acima desdobrado, agrada ao telespectador, o que não significa que este não
deseje algo diverso. Ao mesmo tempo, a densidade de audiência proporciona ao
empresário da Rede de Televisão a venda do seu produto real, qual seja, tempo e
espaço, que, por sua vez, permite ao industrial divulgar suas mercadorias,
criando necessidades para esta mesma audiência. A articulação desses interesses
tão diversificados e contraditórios é regida pelo binômio cumplicidade e
sedução. No dia em que, por quaisquer motivos, a sedução perder sua razão de
ser. a televisão comercial será obrigada a conceder mais. Nisto consiste o
poder de barganha do público-telespectador. A curta história da televisão no
Brasil confirma isto. Quando se cristalizou o modelo político-econômico-social
implantado a partir de 1964, começou-se, gradativamente, no meio da década de
setenta, a consolidar a estrutura atual dos programas televisivos, o que
proporcionou à Rede Globo de Televisão conquistar a preferência de que goza
hoje. E à medida que o descontentamento popular crescia, pelo não cumprimento
dos objetivos prometidos no discurso do modelo, mais concessões eram feitas: o
real, num ritmo cada vez mais acelerado, mistura-se com a ficção.
Contudo,
o poder de barganha dos telespectadores necessita ainda de alguns acertos, a
fim de que o seu peso político possa ser avaliado corretamente.
A
crítica feita, nas novelas, às situações sociais possui propriedades
decorrentes da codificação icônica de que falamos anteriormente. O ritmo
empregado na edição, que leva o telespectador de plano a plano, não permite uma
crítica analítica; limita-se a ser descritiva, ou seja, retrata, somente,
situações sociais. Não as analisa, como também não o faz o humor político de
quadros que fazem parte de Chico Anísio Show e Veja o Gordo. A rápida seqüência
de planos impossibilita a reflexão, que tem um ritmo mais lento em que o
diretor, com a ajuda da câmera, guia o olhar do espectador. Quase diria:
"o diretor acompanha o olhar do espectador de plano a plano, a fim de que
este tenha o tempo necessário para poder aderir ou não à sua posição
política". Não é permitido afirmar isto, pois o tempo em que um plano está
na tela do televisor, está a priori determinado pelo ritmo empregado pela
edição e não pela necessidade subjetiva do telespectador.
Entretanto,
se o tempo de exposição na tela, no caso das telenovelas das "oito"
da TV Globo, tem uma média de 5,1 segundos por tomada, é permitido concluir que
este tempo disponível não possibilita a análise. Ou melhor formulado, o tempo
indispensável para o telespectador "ler" o que está na tela é
inexistente, e isto porque o ritmo imprimido pela edição, como já afirmei
anteriormente, não é uma necessidade do discurso do autor da novela, mas sim
uma imposição decorrente das condições do mundo do trabalho do telespectador.
Nesta perspectiva, a crítica feita a situações sociais só tem condições
materiais de ser descritiva.
Por
fim, é pertinente observar, mais uma vez, que a tendência monopolizante desta
Rede tem sua origem somente na preferência da audiência por sua programação
noturna, que está ajustada às condições físicas e psicológicas das camadas de
baixa renda, ou seja, ao mundo do trabalho.
6. OBSERVAÇÕES CONCLUSIVAS
O
televisor na casa das famílias das camadas de baixa renda é, sem a menor
dúvida, um dos móveis. Cada um deles tem o seu valor de uso, entretanto a
utilidade do televisor, na forma em que é aproveitado hoje, evidencia que o
tempo nada mais é do que um instrumento de controle, igual ao metro e ao quilo,
e que, por esta razão, a separação entre tempo trabalhado e não-trabalhado
esconde uma falsa dicotomia, pois o tempo é um só.
É
evidente — visto que a linguagem do homem se caracteriza pela sucessão de
palavras que constroem um sentido ou argumento — que é impossível não segmentar
um fenômeno social para poder compreendê-lo. Entretanto, impõe-se, após sua
decomposição, a reconstrução deste fenômeno.
Por
outro lado, é pertinente ressaltar que não é objeto deste estudo a televisão
nem sua programação ou programa, mas sim o telespectador que pertence às
camadas de baixa renda.
E
possível, pois, estudar este telespectador a partir de outras referências que
não o mundo do trabalho. Não tenho nenhuma certeza de que se obtenham
afirmações conclusivas que consolidem aquelas às quais cheguei.
Dito
isto, é permissível retomar a questão da separação entre tempo trabalhado e
não-trabalhado.
O
pensamento dualista que faz a separação entre natural e sobrenatural, entre
natural e cultural, matéria e espírito, desenvolvimento e subdesenvolvimento,
leva também a separar o tempo trabalhado do não-trabalhado.
Nesta
perspectiva cabe observar que a separação entre o tempo trabalhado e o
não-trabalhado é somente sustentável no nível da abstração; o trabalho e o
não-trabalho são qualidades diferentes e não opostas de ocupação de tempo. Por
esta razão o tempo da atividade ver ou assistir a televisão, em primeiro lugar,
não se opõe ao tempo trabalhado, mas faz parte integrante dele, e em segundo
lugar, é um grau diferente na atividade de comunicação, dentro de um contexto
social bem mais amplo. Pois, como mostrei anteriormente, o telespectador
intervém de forma direta neste processo de comunicação televisiva; o mínimo que
faz é integrar uma audiência de um determinado programa.
O
mundo do televisor, portanto, é maior do que a sala da casa, não porque traz
para dentro dela as notícias planetárias e mesmo extra-planetárias, mas sim por
integrar as atividades do dia-a-dia da população, sobretudo urbana, de baixa
renda.
Dentro
desta perspectiva é legítimo afirmar que o televisor, como o cartão de ponto, é
uma das extensões do calendário, ou seja, faz parte dos mecanismos de controle
do tempo por parte daqueles que detêm o poder na sociedade. Quase diria o
plim-plim é o toque de recolher, este toque que faz parte do estado de sítio
empregado para controlar uma situação política.
Não
há como negar, portanto, que a televisão é parte integrante na estrutura
produtiva da sociedade capitalista brasileira, mas a verdade não se esgota
nesta constatação. Desconhecer o poder de barganha da audiência televisiva é
atribuir à lógica capitalista a capacidade de esgotar a realidade atual.
Isto
permite afirmar que, na perspectiva delineada, o atual estado televisivo
brasileiro se constitui em um mecanismo de controle das atividades do cidadão
de baixa renda por parte daqueles que detêm o poder, o que é de suma
importância para garantir este mesmo poder. O controle ideológico é
extremamente fugaz, pois idéias e valores são incontroláveis. Mesmo um sistema
de censura o mais eficaz possível não impede que cresça o descontentamento com
uma situação de exploração.
Por
esta razão, é possível e mesmo oportuno para aqueles que detêm o poder, que a
programação televisiva comporte contradições, pois a mescla entre o real e a
ficção resulta no controle do descontentamento, por garantir uma densidade de
audiência.
Consagra-se,
a partir daí, o veredicto gosto não se discute ao verificar que um conjunto de
fatores praticamente obriga o cidadão brasileiro de baixa renda a preencher seu
tempo não-trabalhado com programas televisivos. Ao se constatar que a
codificação icônica de programas da Rede Globo de Televisão se adequa ao seu
estado físico e psicológico, gerado pelo mundo do trabalho, discute-se, sim, o
gosto. Indaga-se, em última análise, se o cidadão brasileiro de baixa renda —
aproximadamente 80% da população economicamente ativa — de fato gosta dos
programas apresentados nos televisores, todas as noites.
No
que diz respeito a pesquisas sobre televisão — sobretudo àquelas que têm como
objeto o telespectador e sua leitura do conteúdo ideológico dos programas — há
de ser considerado que não é suficiente detectar se o cidadão-telespectador de
baixa renda concorda ou não com este conteúdo. Por imposição metodológica, há
de ser averiguado se este cidadão-telespectador está sentado diante do
televisor por realmente gostar do programa ou por outras razões. Conforme os resultados
desta averiguação, a interpretação dos dados primários obtidos deve ser
diferenciada qualitativamente.
Mais
outra conclusão se apresenta.
É
compreensível que, nas primeiras décadas da sua existência, a televisão
conseguiu dividir antagonicamente os estudiosos que se confrontaram com este
fenômeno, em "apocalípticos e integrados" conforme a formulação de
Umberto Eco. A avalanche televisiva foi assustadora para uns e promissora para
outros, dividindo os estudiosos europeus e norte-americanos em dois campos
opostos como se fosse uma guerra de trincheira. No Brasil ambos os campos
conquistaram seus adeptos.
Hoje
— 40 anos depois da inauguração da primeira Emissora no Brasil — a televisão
deixou de ser novidade; já passou o tempo suficiente para estudá-la sob ângulos
antagônicos, embora não fossem alcançadas conclusões definitivas, ou seja, os
resultados de estudos e de pesquisas sobre o fenômeno televisivo permitem
analisar este mesmo fenômeno sob outro ângulo.
Parece-me
que, uma das conclusões deste estudo permite afirmar que, por ser comercial, a
televisão brasileira há de considerar a lei da procura e oferta, pois,
independente da nossa vontade, é esta a lei que rege o mercado: somente
conquistando uma parte da audiência possível, uma Emissora sobrevive
financeiramente. Por outro lado, é falso considerar que esta lei faz com que o
telespectador exerça função participante nas decisões relativas à programação
televisiva, embora sua audiência fortaleça uma Rede ao assistir a um programa.
Neste sentido não é verdadeiro o argumento que procura sustentar uma
participação por parte da audiência quando consideradas, no desenrolar de uma
novela, sugestões de cartas enviadas às Emissoras. Participação, pois, não é
sinônimo de pesquisa de mercado. Em outras palavras, o poder de barganha que a
audiência televisiva detém, merece estudo mais aprofundado, não tanto com o
intuito de verificar seu funcionamento, mas sim como exercê-lo coerentemente em
vista da socialização do conhecimento.
Outra
conclusão permite colocar uma indagação em relação ao uso da linguagem
televisiva. Será que é própria da linguagem televisiva o ritmo cada vez mais
acelerado de edição, ou tal ritmo nada mais é do que um artifício para garantir
a densidade de audiência necessária ao controle sobre as atividades desta mesma
audiência? Caso a última afirmação se aproxime mais da verdade, a tese de que a
televisão é o meio, por excelência, de planos fechados tais como
"close" e "meio plano", também não obtém sustentação. Em
outras palavras, também um estudo mais aprofundado da linguagem televisiva se
torna oportuno a fim de descobrir suas reais potencialidades.
Esta
conclusão deixa mais do que evidente que a realização de uma televisão melhor —
dentro do sistema comercial que conhecemos —, na perspectiva da socialização do
conhecimento, independente do gênero empregado (novela, programa musical,
telejornal) que medie este conhecimento, exige algo a mais do que um simples
ato de vontade.
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