PUC-Rio

Jornal/Revista: Folha de S. Paulo
Data de Publicação: 11/12/2005
Autor/Repórter: Laura Mattos

NIEMEYER FAZ 98, E BRASÍLIA VIRA ESTRELA DA TV

A convite da Folha, criador da capital dá entrevista a autores de "JK" (Globo) e "Cidadão Brasileiro" (Record)

Oscar Niemeyer pretende "sumir" na próxima quinta-feira. Não quer saber de comemoração do aniversário de 98 anos. "A vida não é tão boa para a gente estar comemorando, é difícil", atesta o mais importante arquiteto do Brasil, que trabalha de domingo a domingo, das 9h às 20h.

Não, ele não se acha merecedor de festa "só" pelo fato de continuar à frente de vários projetos no país e no exterior às vésperas de seu centenário. E mais: "Não gosto de falar a idade, não. É chato".

Mas um presente, concorda, aceitaria de bom grado: a demolição de parte da marquise do Ibirapuera para a construção de uma praça entre a Oca e o auditório, conjunto de sua autoria. "Estou contando com o Serra. Ele me prometeu que iria examinar."

E vamos encerrar de vez essa conversa de longevidade: "A gente vai se adaptando. Não tenho problema de saúde, a coisa vai andando. Vou completando minha passagem. Cada um de nós escreve uma historinha, e eu tenho uma página, mas não tem nada de especial". Só ele acredita nisso.

Como se a brilhante carreira de 70 anos já não bastasse, Niemeyer continua a acumular projetos e mais projetos. Atualmente, entre outros, debruça-se na criação de um complexo aquático para a Alemanha, em uma encomenda ainda sigilosa do Principado de Astúrias, na Espanha, na nova sede do TSE, em Brasília, no Memorial Érico Veríssimo, em Cruz Alta (RS) e em uma torre com restaurante e mirante, em Natal (RN). "É, tenho trabalhado muito."

Brasília, a grande obra do arquiteto, terá sua construção abordada em duas produções televisivas: na Globo, a minissérie "JK", de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira, que estréia em 3 de janeiro, e na Record, a novela "Cidadão Brasileiro", de Lauro César Muniz, exibida a partir de março.

A série narrará a vida de Juscelino Kubitschek, passando pela construção da capital. O terreno vazio, o lamaçal, as obras, o alojamento dos candangos e o Catetinho serão reproduzidos no Projac, no Rio. Haverá ainda computação gráfica e imagens atuais.

Para a parte arquitetônica, os autores contaram com a consultoria de Rodrigo Amaral, filho de Maria Adelaide, formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Segundo ele, a minissérie não reconstruirá a cidade do ponto de vista técnico. "Vamos reconstruir Brasília através da emoção dos que a construíram. Queremos mostrar o lado humano da construção, desde o candango que veio da seca do Nordeste até o engenheiro que largou tudo em outra cidade e se mudou para lá", diz Rodrigo.

O protagonista será interpretado por Wagner Moura (primeira fase) e José Wilker (segunda).

Já "Cidadão Brasileiro", da Record, passa por Brasília em razão da trajetória do personagem-título. Antonio Maciel (Gabriel Braga Nunes) é contratado por uma empreiteira para a construção. O autor pretende "enfocar a gigantesca obra de Brasília através da ótica de um homem do povo, um pioneiro como tantos outros, que viram na nova capital uma oportunidade de ascensão econômica".

As obras da capital serão reproduzidas numa fazenda em Bragança Paulista, no interior. A Record não economizou em sua primeira novela das oito da retomada da teledramaturgia. Além do autor-grife, contratou Lucélia Santos e outros ex-globais. Serão R$ 50 milhões de investimento, o maior do canal nessa área.

Niemeyer, claro, é fonte de pesquisa e inspiração das duas produções. Diante disso, a convite da Folha, Maria Adelaide e Muniz elaboraram perguntas ao arquiteto, que as respondeu. Leia a entrevista VIP nos textos abaixo.

"O QUE O SR. CONDENA NA CAPITAL DE HOJE?", PERGUNTA LAURO CÉSAR MUNIZ - Nascido no interior paulista, Lauro César Muniz, 59, é conhecido por introduzir crítica social em suas novelas. Autor de "O Salvador da Pátria" (1989, Globo), ele não quer saber apenas o que Niemeyer pensa sobre Brasília.

Fundador da Associação de Roteiristas da TV, entidade que briga por melhorias profissionais, Muniz dá tom político à entrevista com o arquiteto. Até sobre a China de Mao perguntou. Confira.

Lauro César Muniz - Lindos versos de Ferreira Gullar fazem jus à sua genialidade: "Com seu traço futuro/ Oscar nos ensina / Que o sonho é popular...". O sr. acha que esse "traço futuro", a concepção nada convencional de Brasília, influenciou o espírito de quem participou da construção?

Oscar Niemeyer - Eu acho que os nossos irmãos operários que construíram Brasília e que de todos os cantos do país para ela acorreram cheios de esperança pensavam que na nova capital encontrariam uma vida melhor, sem a pobreza que até hoje nas cidades-satélite os acompanham.

Muniz - O personagem central de "Cidadão Brasileiro", nossa novela, participa da construção desde a primeira hora, como chefe de obras. Como definiria esse pioneiro que veio construir a nova capital?

Niemeyer - Havia o exemplo de JK e o orgulho de construírem a nova capital, de participarem dessa grande e patriótica aventura.

Muniz - Nosso protagonista vive num barracão de madeira, onde trabalha e dorme, na Cidade Livre, como ficou sendo chamada a cidade provisória onde viviam os candangos. Sabemos que depois eles tiveram de abandonar os espaços nobres e foram para seus "devidos lugares". Isso quer dizer que a utopia urbana sonhada pelos idealizadores de Brasília cedeu lugar à realidade social do país?

Niemeyer - Você está certo. Em princípio, acho que não deve haver numa cidade divisão entre pobres e ricos. As cidades não deveriam crescer sem controle, mas sim se multiplicar entre grandes espaços vazios. As cidades-satélite surgiram espontaneamente, a meu ver perto demais do Plano Piloto, agravando os problemas urbanísticos da nova capital.

Muniz - Quais os seus grandes temores durante a construção?

Niemeyer - Não havia tempo para isso.

Muniz - Quase 50 anos depois de iniciada a construção, quando a cidade já tem mais de 2 milhões de habitantes, o que o sr. mais admira e ama na Brasília de hoje? E o que o sr. mais lamenta e condena?

Niemeyer - O que mais admiro e amo na Brasília de hoje... é ver a cidade construída e ouvir dos que nela residem a afirmação de que gostam da cidade e dela não pretendem mais sair. Lamento não ter sido criado, em volta do Plano Piloto, o grande espaço vazio que toda cidade deveria ter.

Muniz - A China continua socialista sob o ponto de vista político, mas absorveu um tipo híbrido de economia de mercado. Essa experiência aponta para o futuro do socialismo ou outros caminhos aparecerão na dialética da história?

Niemeyer - É difícil prever o futuro. Há sempre o inesperado que tudo modifica. Mas a China teve Mao, e a sua memória compreende um exemplo que muita influência terá no futuro desse país.

"TEREMOS OUTRO JK?", INDAGA MARIA ADELAIDE - Maria Adelaide Amaral, 64, nascida em Portugal e criada na capital paulista, é "louca" por pesquisa. Virou a autora número um das minisséries da Globo, e sua especialidade é dar tom de folhetim a histórias reais, como em "Um Só Coração" e "A Muralha".

Em "JK", contou com a consultoria de seu arquiteto predileto: Rodrigo, seu filho. Com a orientação dele também, ela elaborou as seguintes perguntas a Niemeyer, a quem Rodrigo chama de "Deus".

Maria Adelaide Amaral - O sr. acha que seria possível, hoje, fazer Brasília novamente?

Oscar Niemeyer - Tudo é possível. O difícil seria encontrar um presidente com a determinação e o entusiasmo de JK.

Maria Adelaide - Há algum arquiteto urbanista vivo, com a genialidade de Lúcio Costa, apto a fazer um plano piloto como o de Brasília?

Niemeyer - Deve existir.

Maria Adelaide - Se o sr. tivesse que refazer os projetos, hoje, o que mudaria?

Niemeyer - Eu procuraria manter a mesma criatividade. Quem visita Brasília pode gostar ou não dos seus palácios, mas nunca afirmar que viu antes coisa parecida. E isso é boa arquitetura.

Maria Adelaide - Concursos, licitações, licenças ambientais e toda a burocracia permitiriam hoje tirar uma nova Brasília do papel?

Niemeyer - Levaria mais tempo, pelo menos. Brasília foi feita a correr, sem que para isso adotássemos uma arquitetura mais simples e fácil de realizar.

Ao contrário, foram soluções mais livres e audaciosas que adotamos. Um exemplo: teria sido mais fácil fazer as colunas do Palácio do Alvorada mais simples e convencionais do que construir as que desenhei.

Maria Adelaide - O próximo ano marcará 50 anos do governo JK. Teremos eleições presidenciais e muitos candidatos buscarão se comparar a JK. Será que um dia teremos outro Juscelino?

Niemeyer - É preciso ser otimista. A situação do Brasil é tão complexa, o país está tão ameaçado, que alguém corajoso, progressista e nacionalista deve aparecer.

BRASÍLIA HOJE - "O que mais admiro e amo na Brasília de hoje é ver a cidade construída e ouvir dos que nela residem a afirmação de que gostam da cidade e dela não pretendem mais sair" - OSCAR NIEMEYER, arquiteto

Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 115908