PUC-Rio

Jornal/Revista: O Estado de S. Paulo
Data de Publicação: 11/01/2010
Autor/Repórter: Patrícia Villalba

LEAR REINA NO CENTRÃO DA NOVA NOVELA DAS 7

Em Tempos Modernos, Bosco Brasil se inspira em tragédia para fazer comédia

Um Rei Lear charmoso, ético e de notável veia cômica passeia pelo centro de São Paulo como se fosse um homem comum. Não é. É Leal, personagem de Antônio Fagundes em Tempos Modernos, novela das 7 que estreia hoje na Globo, para substituir o sucesso Caras & Bocas, de Walcyr Carrasco.

A ligação da novela com o teatro é mais do que evidente, a começar pela própria referência à tragédia de Shakespeare e a um elenco repleto de nomes conhecidos dos palcos paulistanos, encabeçado por Fagundes e que traz ainda Jairo Mattos, Fernando Medeiros e Guilherme Weber, entre outros. Nada disso é coincidência, considerando que a trama marca a estreia do dramaturgo Bosco Brasil como autor titular em novelas, depois de mais de 18 anos atuando como colaborador de Walter Jorge Durst, Silvio de Abreu e Maria Adelaide Amaral. "Sinto como se tivesse cursado o colegial com o Durst, a faculdade com Silvio de Abreu e, agora, o mestrado com o Aguinaldo Silva", brinca ele, em entrevista ao Estado, citando o autor que supervisiona seu texto em Tempos Modernos. "Eu mesmo pedi um supervisor para a Globo, não queria embarcar nessa aventura sozinho. E foi bom, porque o Aguinaldo é um grande incentivador do projeto da novela."

Autor premiado, Bosco chamou a atenção do público e da crítica desde a estreia como autor, em 1994, com a peça Budro, pela qual recebeu os prêmios Shell e Molière. Mas foi em 2001 que ele levou aos palcos seu maior sucesso, Novas Diretrizes em Tempos de Paz, com Dan Stulbach e Jairo Mattos, que depois seria substituído por Tony Ramos. O autor ganhou projeção também na cena paulistana quando fundou com um grupo de atores o Teatro de Câmara de São Paulo, na Praça Roosevelt, no final dos anos 90, uma tentativa de revitalizar, por meio da arte, o espaço público degradado.

Da experiência, ele tenta disseminar na novela a ideia de que o centro paulistano precisa de revitalização e que a arte é o melhor caminho - por isso, o telespectador vai ver na TV uma região colorida, alegre e fervilhante. E também dos tempos de administrador de teatro acredita ter conseguido a casca necessária para lidar com a pressão do ibope, que vai sofrer pela primeira vez a partir de hoje. "Você não faz ideia o que é ficar na porta do teatro esperando o público. Você sabe que a peça é boa, mas vai chegando as 21 horas e ninguém aparece. A frustração é enorme", compara.

- Você é conhecido como autor de teatro, especialmente em São Paulo. Como está fazendo a transição dessa linguagem para a televisão, agora que assina uma novela?

- Essa transição na verdade foi feita lentamente, porque estou completando 18 anos como colaborador de outros autores. Foi um trabalho que acompanhou grande parte da minha carreira no teatro. Mas não vou parar de escrever para o palco, continua sendo minha paixão e meu interesse. Só estou dando um tempinho. Quando estava como colaborador, me obrigava a escrever uma peça para não me afastar. Agora, acho que será mais difícil escrever alguma coisa paralela, mas é uma reflexão constante. Estou tentando incorporar elementos do teatro que eu acho que podem ser desenvolvidos na TV. Não sinto como se estivesse falando para um público diferente, mas como se estivesse aumentando meu público. Estou potencializando aquilo que gosto de fazer.

- A novela tem uma base em Rei Lear e ainda traz Antônio Fagundes, um nome forte dos palcos, como protagonista. Quais outros elementos de teatro aparecem na novela?

- Tem esses aspectos que você citou que são bastante importantes. Mas o meu Lear vai passar por outras situações, não é exatamente o de Shakespeare. A peça fala muito da relação entre pai e filha, que é uma coisa que toca muito todas as pessoas. O aspecto dos colegas que trabalham no teatro também é importante, porque eu me sinto entre amigos. Outro aspecto é que quero manter a estrutura essencial da novela, que é o melodrama, mas fazer isso com uma certa confluência de linguagens. Não só o teatro será citado, mas a história em quadrinhos, o universo musical, alguma coisa operística e a tecnologia. Sem perder o fio da meada, que é o que o público realmente quer: a história, a emoção, o riso. Nisso, o teatro entra como uma linguagem específica e também um conceito, porque a vida é um grande teatro, uma grande cena e as pessoas estão incorporando seus papéis. Personagens como os vilões, por exemplo, têm bastante consciência da sua condição, têm prazer no ato de ser vilão. Pelo menos na TV a gente pode rir dos vilões.

- Um elenco com tantos nomes do teatro tem a ver com a sua origem ou é coincidência? Você participou ativamente da escalação dos atores?

- Sem dúvida. Mas foi por que o diretor, o (José Luiz) Villamarim é um grande parceiro. Por isso pude palpitar tanto. E era esperado que eu puxasse a sardinha para os atores de teatro, já que eu vim de lá e muitos de meus amigos estão lá. Mas a primeira intenção era trabalhar com bons atores.

- E como você adapta Rei Lear, que é uma tragédia, para uma novela das 7, que é essencialmente leve?

- Aí há duas vertentes. Gosto de perceber que a relação entre pai e filha rende bastante. Tem aquelas coisas que você se interessa sem motivo, não é? E eu estou empenhado em mudar os polos, alternar entre tragédia e comédia. É que às vezes, se a gente bobear, a tragédia fica cômica. O Lear é um cara meio inexplicável, porque ele faz aquela bobagem (decide dividir seu reino entre as três filhas, mediante o amor que cada uma sente por ele), e entra naquela bagunça. Fica meio cômico se você pensar naquele monte de besteiras que ele sai fazendo. Vou pegar essa comicidade, mas sem dúvida é uma comédia leve, que não foge da abordagem da finitude do ser humano e da potência do amor. Gosto de misturar drama e comédia, meu estilo em teatro também é esse. O desafio vai ser contar a história nesse fio de navalha. E só um ator como o Fagundes pode fazer isso.

Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 161701