PUC-Rio

Jornal/Revista: Jornal do Brasil
Data de Publicação: 17/11/1988
Autor/Repórter: Márcia Cezimbra

CORCOVADO, A TV ALTERNATIVA

Apesar de traço no Ibope, o canal 9 sobrevive com programação alternativa que atende desde o surfista aos evangélicos

O nome TV Continental já sugeriu, nos anos 60, um amplo horizonte ao Canal 9, depois limitado por um batismo paulistano de TV Record e agora resumido a um símbolo do Rio como TV Corcovado. A penúltima estação carioca em audiência - só ganha da TV Rio - bem poderia, sem ironia, chamar-se TV Vanguarda, por ser a única totalmente aberta à produção independente, uma tendência antenada com a modernidade das emissoras européias e americanas.

A diferença aqui é que a TV Corcovado, extra-oficialmente do Grupo Sílvio Santos, não tem câmeras, estúdios ou um carro para reportagens. A única repórter-redatora-apresentadora, estagiária de Comunicação Márcia Patrícia, é a primeira a admitir que seus boletins "não são jornalismo de verdade". A emissora vende seu espaço a qualquer produção por 50% do faturamento de cada programa. Foi esta política que viabilizou, por exemplo, o sonho da dupla de surfistas Ricardo Bocão, 33 anos, e Antônio Ricardo, 25, comandantes de programa de rock e de altas ondas Realce (todo sábado, às 18h30), líder de faturamento da emissora. Com quatro cotas de patrocínio de Cz$ 1,8 milhão vendidas para a Coca-Cola, o McDonald's, a Company e a Morey Boggie, Realce fatura em média Cz$ 16 milhões por mês, entrega metade à TV e, descontados custos operacionais, viagens internacionais e investimentos, rende Cz$ 500.000 mensais para cada um dos produtores pagar "só o aluguel e despesas pessoais".

O nome TV Vanguarda talvez fosse proibido por ser título de antigo programa da Tupi, recriado há dois anos pela TV Cultura, de São Paulo. Foi isso pelo menos o que aconteceu com o penúltimo nome do Canal 9, TV Copacabana, embargado pelo grupo da Rádio Copacabana. O nome é mera questão formal. O importante, para o proprietário informal, oficialmente proibido por lei de ter duas estações na mesma cidade, é que ele traga uma marca do Rio. "O Sílvio quer acariocar a emissora. Uma palavra que não está em moda, mas é a que ele usa", diz a diretora-executiva da TV Corcovado e diretora regional da TVS no Rio, Sarita Soares, irmã caçula do apresentador e presidente do SBT. E ainda mera questão de formalidade o nome dos empresários que obtiveram a concessão do Canal 9. Ele pertence, oficialmente, ao vice-presidente do SBT, Guilherme Stoliar, proprietário também de 50% das ações da TV Record de São Paulo, sobrinho e concunhado de Sílvio Santos. Há boatos de que a mais velha das seis filhas de Sílvio, Cíntia, estaria entre os acionistas, mas o Dentel informa que a relação dos cotistas é uma informação reservada. "Não tem nada no nome de Cíntia, mas todo mundo sabe que é tudo a mesma empresa", explica Sarita.

Na própria correspondência comercial, a TV Corcovado se apresenta como emissora "do grupo SBT" e todo mundo sabe que, desde 1985, quem manda lá é Sílvio Santos. Sarita é a primeira a confirmar o projeto do irmão de ter duas redes de TV. A rede nacional, com transmissões para todo o país, seria o SBT e outra, paralela, liderada pelas TV Corcovado no Rio e Record em São Paulo, se dirigiria exclusivamente à sua região. Nesta estratégia, a programação da TV Corcovado busca cada vez mais públicos específicos. Os crentes são atingidos pelos programas religiosos - Manhã de alegria, Posso crer no amanhã e Palavras de vida estão entre os 12 títulos das atrações matinais vendidos a seitas evangélicas. Realce e Vibração (diariamente às 18h30) atraem a juventude entediada com a global Fera radical. Depois, vem a jornalista Léa Pentheado seduzir com Programa da noite, às 19h, senhoras cansadas de Bebê a bordo. Há ainda, por exemplo, o programa Gente como a gente, com entrevistas de prefeitos e políticos do interior, patrocinado pela Caixa Econômica, pela Churrascaria Gaúcha e pela prefeitura de Petrópolis. Uma produção local com mais de 20 títulos por dia, porém, conseguiu emplacar no último relatório do Ibope, apenas dois programas entre os 13 melhores da emissora - Samba de primeira (sábado às 14h), patrocinado pela Kaiser e produzido pela empresa do relações públicas da cervejaria, Jorge Perlingeiro, é o quinto lugar com

um ponto de Ibope e Som na caixa (diariamente às 13h30), produzido pela Atlântida Vídeo, do global Wolf Maya, fica em nono também com um ponto. O campeão da Corcovado é o seriado Os garotinhos ( ex-Batutinhas, que era apresentado na TV Educativa) com dois pontos de audiência.

Os 30 segundos mais baratos da TV Corcovado são os de Rio turismo - CZ$ 12.000 para as edições de segunda a domingo de 15h30 às 18h30 e Cz$ 9.000 para as edições madrugada afora, a partir da 0h50. O programa é uma repetição interminável de um clip sobre turismo no Rio, narrado em português, espanhol e inglês, idealizado por Sílvio Santos depois que ele viu, num canal a cabo de um hotel nos Estados Unidos, informações para turistas na TV. É produzido pela Beto Nóbrega Produções (filho de Carlos Alberto da Nóbrega, diretor do SBT) e já tem contratos com 30 hotéis de quatro e cinco estrelas do Rio para a exibição de documentários específicos sobre os serviços de cada hotel, como se fossem programas fechados de uma emissora a cabo. Apesar dos traços do Ibope na maioria de sua programação, a emissora vende para o pequeno anunciante um espaço barato e direto ao público desejado. "Nossos anunciantes são aqueles que não podem pagar a Globo. A audiência é baixa, mas o tiro é certo", comenta o diretor comercial Amauri Worms, apelidado pelos colegas de SBT de Bonivado, o Boni da TV Corcovado.

OS VERDADEIROS JUBA E LULA - Eles são o Juba e o Lula da vida real. Os surfistas Ricardo Bocão, 33 anos e Antônio Ricardo, 25, vencedores de vários campeonatos nacionais importantes, começaram juntos em 1979 na revista Realce, de rock e surf, rapidamente falida por falta de patrocínio. "Não acreditavam muito na gente", comenta Antônio Ricardo. A revista virou um piloto de programa que não chegou a estrear na Bandeirantes e, em 1983, vingou finalmente na TV Record, um ano antes da gestão Sílvio Santos. "O Sílvio acabou com toda a produção de VT e com os equipamentos, que agora alugamos à empresa Bikeshow". Os meninos ainda funcionam através da empresa do pai de Antônio Ricardo, a Unigraf Editora, mas já comercializam o Realce (sábado, às 18h30) em São Paulo (TV Record), Rio Grande do Sul (TV Pampa), Brasília (TV Nacional) e Paraná (TV Curitiba), o maior faturamento unitário da TV Corcovado, depois do duplamente comercializado Programa Sílvio Santos. A dupla produz ainda o diário Vibração (de segunda à sexta, às 18h30), cujo resultado pode se medir com a estréia, a partir da próxima segunda-feira, também na TV Record em São Paulo.

Os surfistas realizaram o sonho da categoria: Não perder um festival internacional e já apresentaram especiais sobre Austrália, Havaí e campeonatos na Califórnia. "A gente viaja sozinho, fica na casa de amigos e filma tudo, depois põe a câmera no automático e apresenta. Quando um viaja, o outro cuida da produção local", explica Antônio Ricardo. Agora o sonho é mais alto: Faturar até comprar equipamento próprio. Com um faturamento bruto de CZ$ 16 milhões, metade vai para a TV Corcovado e, descontado os custos e percentuais para as agências de propaganda, o restante vai para

investimentos. "Nós poderíamos tirar uma salário de Cz$ 1 milhão, mas preferimos investir e tirar só uns Cz$ 400.000 para despesas de aluguel e contas mais pessoais", comenta Antônio Ricardo. Já Ricardo Bocão desafia o traço do Ibope com uma proposta de percorrer qualquer canto ou escola do Rio, Zona Sul ou periferia, para ver como está conhecido pela rapaziada. "Se a gente desse traço no início e agora desse uns dois, ainda vai. Mas tudo a mesma coisa, não é possível, porque crescemos demais". O patrocínio da Coca-Cola chegou, aliás, depois que um de seus diretores, segundo eles, via o filho e uma turma de amigos, todo sábado, ligados no Realce.

ALEGRIA DO DIVULGADOR - Pode se afirmar que o Programa da noite, diariamente às 19h na TV Corcovado, provocou mais uma virada radical na vida da jornalista, apresentadora e divulgadora Lea Pentheado. A estreante na TV em 1971, na produção do campeão de audiência Flávio Cavalcanti, se recusava, desde essa época, a aparecer no vídeo até se deixar seduzir por Alberto Viseu, proprietário da Teletape, produtora deste e de outros títulos - A conquista da terra, na Bandeirantes, Memória nacional e Intervalo, na TVE, este último recém premiado em Nova Iorque. "De repente, eu me perguntei por que não? E, em cinco dias, á estava gravando sem ler fichas ou perguntas prévias, com a vantagem de meus 20 anos de jornalismo lítero-recreativo-sócio-cultural", diz a divulgadora de eventos artísticos e de todos os espetáculos do Canecão.

A entrevista de estréia foi com Flávio Cavalcanti Filho, diretor de contas da Artplan, em homenagem à estréia de Léa na TV. Depois veio uma lista de gente feliz com a possibilidade de falar sozinha durante 45 minutos. "Eu chamo o programa também de alegria do divulgador, porque aqui tem todo o espaço que eles reclamam nos jornais e nas outras emissoras", diz. A virada pessoal ficou por conta de outra entrevista, com o numerólogo Gilson Shveid, que sugeriu a inclusão de mais um th no nome de Lea Penteado para garantir maior estabilidade. A entrevista rendeu inúmeros telefonemas de fiéis e leigos em Numerologia e, para Léa, foi sinônimo de sucesso. "Depois que mudei meu nome, só falta pregar urna placa à porta dispensando novos clientes. Não paro mais de assinar contratos", diz. A maré está tão boa que Léa decidiu fechar de vez seu escritório de divulgação, ao aceitar, há uma semana, uma proposta milionária para montar na agência V.S. Escala um departamento de Comunicação Social e uma empresa de promoções.

Talvez na agência Lea Pentheado consiga vender a sua quota de publicidade no Programa da noite. "Eu tenho uma quota de patrocínio, mas ainda não vendi porque não vendo sequer um grampo. Só vendo idéias", diz. E as idéias do Programa da noite parecem bem recebidas pelo público, apesar do traço no Ibope. "Eu não tenho estúdio. Tenho de ir na casa das pessoas. Por isso vou a festas, para entrevistar várias pessoas de uma vez. No aniversário do Moacyr Deriquém, ele me disse que no dia seguinte todos na rua lhe davam parabéns. É um público que não vê novela, principalmente esse negócio muito puxado para o infantil de Bebê a bordo."Lea entrevistou ainda Cidinha Campos que pediu aos seus milhares de ouvintes que assistissem à entrevista feita em sua própria casa e, num programa sobre Santa Edwiges, uma entrevista com um senhor que anunciava o horário das missas à porta da igreja, fez com que, a cada anúncio, o senhor vaidoso fizesse uma chamada para o programa, reprisado a pedido de "milhares de telespectadores". "O público já sabe usar o controle remoto e, aos poucos, vai descobrindo os outros canais".

UMA QUESTÃO DE FAMÍLIA - A estratégia de Sílvio Santos de acariocar a TV Corcovado serve ainda para definir a estética interna da emissora de apenas 85 funcionários, boa parte ex-empregada ou ainda vinculada ao SBT. Mais brega que a antesala da diretora Sarita Soares, por exemplo, somente os pingüins das geladeiras de um acariocado subúrbio. O piso é de lajotão, o sofá de plástico, plantas em vasos forrados de papel laminado e, de centro de mesa uma galinha de cerâmica com o rabo quebrado e colado por uma fita isolante. É pisar ali e entender, instantaneamente, a idéia de Sílvio Santos de ter uma emissora anti-Globo. Tudo parece ter o clima daquele sorrisão de apresentador, que tomou conta também do rosto da irmã caçula. Apesar de "assinar muito papel", Sarita descobriu, há oito anos, como assistente de produção do SBT, que televisão ainda é a melhor diversão. "Aqui não há rotina. No tempo do Namoro na TV um quadro do, Programa Sílvio Santos, eu levava até os namorados pari conhecer o Rio. A gente está sempre em contato com artistas, cada dia diferente do outro."

O diretor comercial Amauri Worms o Bonivado (o Boni da TV Corcovado recusa este apelido. "Ele serve mais para o Bené Costa, o gerente de programação. Eu seria mais um Walter Clark, que já saiu de lá, mas cuidava também de questões comerciais", diz. Amauri revela que a demanda de independentes a procura de um espaço é enorme, "mas a maioria vai embora quando cai na realidade dos custos de um programa". Já Bené Costa, que está "no grupo" há 14 anos, divide-se entre a programação dos filmes que passam também na TVS - "mas em dia e hora diferentes, eu que escolho as datas", adverte - e sua produtora de vídeos Sifran, ultimamente abarrotada de produções para o horário do TRE, com tabelas de Cz$ 200.000 a Cz$ 1 milhão.

Todos parecem felizes na TV Corcovado. O diretor executivo da seguradora Panamericana, uma das 49 empresas do Grupo Sílvio Santos, Jair Marchesini, disse ter perdido até a vergonha de trabalhar no SBT. "Agora dá é orgulho. Antigamente, as pessoas subestimavam um funcionário do SBT, mas hoje a imagem mudou", diz. Há 16 anos "no grupo", o ex-office boy Jair trabalha para Sílvio Santos, ao mesmo tempo em que dirige suas fazendas na Bahia e empresas particulares, como a Piatã Publicidade, produtora de dois programas da TV Corcovado: Gente como a gente e O Rio é nosso (de segunda à sexta, à 0h15), este com um faturamento mensal de Cz$ 30 milhões (metade para a emissora) para entrevistas que, a partir de janeiro, serão exibidas também em Portugal. Os 30 segundos do Rio é nosso custam Cz$ 100.000 e só perdem para os do Realce (Cz$ 120.000) e os do Programa Sílvio Santos (CZ$ 150 mil). O custo mais caro do programa é o aluguel do estúdio de Roberto Stoliar (irmão do proprietário formal) por 1.000 OTNs por mês. Jair Marchesini está feliz até com a facilidade de patrocínio."Como executivo do grupo, sou amigo de Climério Veloso, das Casas da Banha, e muitos outros grandes empresários a quem não preciso pedir nada. Dão na hora", diz. O clima familiar se estende aos 85 funcionários menores, concorrentes, a cada final de ano, a uma viagem à Disneylándia. "Uma viagem com a família inteira. Tudo no SBT é com a família inteira", brinca Sarita.

Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 8402