PUC-Rio

Jornal/Revista: ISTO É - Gente
Data de Publicação: 11/03/2004
Autor/Repórter: Rodrigo Cardoso

“MINHA VIDA GIRA EM TORNO DA HEMODIÁLISE”

O ator volta às novelas em Metamorphoses, na Record, e conta como a insuficiência renal mudou sua rotina

Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri morou em sua terra natal somente até os dois anos. Filho único de um regente e de uma harpista, deixou a Itália junto com os pais para fugir do regime fascista e se instalou no Rio de Janeiro. No Brasil, conheceu as mazelas das favelas e abraçou os ensinamentos políticos do pai. Em 1956, aos 22 anos, escreveu a peça Eles Não Usam Black-Tie, encenada dois anos depois no Teatro de Arena. Tornava-se pioneiro na abordagem da vida de metalúrgicos em greve. Dois casamentos, seis filhos e seis netos depois, o ator e dramaturgo volta a encarar uma novela do começo ao fim após quase dez anos. Aos 69 anos, estará em Metamorphoses, na Record, que estréia no domingo 14. Por sofrer de insuficiência renal, há dois anos faz hemodiálise. Mas nem os problemas de saúde lhe tiram o bom humor: “Como aquele pastel de feira enorme e a hemodiálise limpa tudo!”.

- Qual era a diversão de um italiano que cresceu no Rio?

- Meus pais trabalhavam na orquestra do Teatro Municipal. Quando tinham de ensaiar à tarde, eu ia com eles. Com 4 anos, assistia ópera. Eu era muito bonzinho, porque ficava no fosso da orquestra, em cima de uma caixa de instrumentos, na ponta do pé, tentando ver o palco. Tinha outras brincadeiras, mas a principal era imitar meu pai. Fazia de uma toalha uma espécie de casaca, pegava um pincel da minha mãe, ligava o rádio e ficava regendo por horas, em casa.

- E praia?

- Nunca gostei. O problema era a areia, que me incomoda até hoje. Naquela época, jogávamos futebol em ladeira. Às vezes, tinha um campo de um instituto de surdos e mudos e...(risos) Um dia, fui juiz nesse campo e apitava, mas ninguém dava atenção. Não me toquei que estava apitando um jogo de surdos. Passei a usar um pano para que me obedecessem. Ali, aprendi que não dava para apitar jogo de surdos e mudos. A partir dos 13, 14 anos passei a me interessar por política.

- Como foi sua militância?

- Tinha o exemplo do meu pai. Ele foi contestador, antifascista ferrenho. O ideário do partido comunista era de liberdade de expressão, de justiça social e era nesta base que meu pai se situava. Era um democrata, mas achava que a mudança total só viria com a revolução. Optei pelo caminho do meu pai. Ingressei no movimento estudantil, fui presidente da Associação Metropolitana dos Estudantes Secundários e vice-presidente da União Nacional dos Estudantes Secundários. Fanático não é o termo, mas era dedicado.

- Que ideais buscava?

- O estudante secundário não deveria ser marcha de

manobra, ser usado como um proclamador de palavras de ordem. Mas fazíamos esforços para criar grêmios nas escolas, visitávamos colégios, centros acadêmicos. Saíamos às ruas também, levei pancadas, fazia parte. A partir dali formulamos o que deveria ser o movimento estudantil: um auxiliar das forças que achavam que somente uma revolução poderia ser a solução. Começamos a pensar numa atividade artística para atrair o jovem. Em 1948, havia um boom do novo teatro brasileiro. Chegamos ao conhecimento desse teatro em 1952. Assim, o teatro entrou na minha vida. Em 1954, formamos o Teatro Paulista do Estudante (TPE) e a intelectualidade nos paparicava.

Por causa de Black-Tie, sempre cobraram do senhor peças engajadas.

- Já se chateou com isso?

- Tenho preocupações sociais, essa é minha vida. Para mim não é esforço nenhum. Não me obrigo, ideologicamente, a fazer assim. O trabalho de ator não me dá nenhuma preocupação. Me sinto um peixe dentro d’água. Tenho uma alegria de representar que é uma coisa incrível. Representar me dá água na boca. Já escrever, é uma responsabilidade imensa.

- Teve alguma outra atividade profissional, além do teatro?

- Quando quis sobreviver sem a ajuda dos meus pais, trabalhei num escritório de imobiliária. Fazia pagamentos do pessoal da construção civil. Foi quando descobri como o trabalhador era pobre, miserável. Pensava: “Como eles sobrevivem com isso que ganham?”. Também tive uma empregada, a Margarida Oliveira, que ficava muito tempo comigo. E ela me levava para junto dos parentes dela, que moravam na favela. Conheci favelas e figuras fantásticas que habitam minha memória e serviram de inspiração.

- Como vê o governo Lula?

- Com grande alegria o fato de o povo votar no Partido dos Trabalhadores. Falava-se tanto em mudança e o povo resolveu acreditar numa. Estamos vendo que a mudança pode ser feita, mas não é como a gente quer. É um ato de vontade também à medida da possibilidade. A coisa é intrincada, as pessoas têm de fazer alianças e muita gente pode se decepcionar com o rumo das coisas. A gente tem de dar um crédito às pessoas honestas. Eu votei no Lula.

- E o escândalo Waldomiro Diniz?

- Não vejo assim: “Que coisa, Lula me decepcionou”. Não é um governo de esquerda, é um governo de centro, de social-democrata, que seria o do Fernando Henrique. Estamos num regime capitalista, ainda. Acontece que as sacanagens surgem em qualquer lugar. Tem muita gente que quer trabalhar pelo País, mas junto disso, principalmente quando assumem o poder, vai surgir contrabando perto de figuras do governo. Admiro o (ministro) Zé Dirceu. Sempre o admirei desde quando era um líder estudantil. É como disse o (senador Aloisio) Mercadante. Estou há 24 anos ao lado do cara, acha que vou duvidar desse cara? 

- Dizem que o senhor e seu grupo de amigos bebiam durante 15 dias seguidos e folgavam nos outros quinze. É verdade?

- Acontecia. Teve uma época que era bonito, era legal ser assim. Até hoje, chamo o botequim de escritorinho. Nos primeiros tempos era cerveja. Depois, ampliamos o repertório e, aí, era um pouco (pausa) o que tem, toma (risos). Não tinha essa sofisticação de escolher muito, era na base do conhacão. Só nunca fui muito de cachaça. Passei a gostar muito de uísque. Não perdia a mão... ficava bêbado. Mas nada de ficar na sarjeta. Na sarjeta não, mas dormia dentro do carro.

- Isso prejudicou sua saúde?

- Bem não faz. Em 1994, fiz uma operação porque tive um aneurisma na aorta renal. Na cirurgia fiquei com um dos rins comprometido. Os médicos falaram que é hereditário, meu pai morreu de aneurisma na aorta. Depois dessa manifestação comecei a tomar cuidados mais severos. Fiquei com insuficiência renal crônica e faço hemodiálise duas vezes por semana. Há dois anos, quando iniciei o tratamento um dos rins tinha 29% de funcionamento e o outro já foi extraído.

- O que não tem mais condições de fazer por causa desse problema no rim?

- Tenho de me privar de coisas que todo mundo deveria se privar: gordura, frituras, tomar porres. Socialmente dá para beber. Se eu vou a uma festa, dá para beber um uisquezinho. A hemodiálise é fantástica. O pessoal diz: “Putz, ele está fazendo hemodiálise, tá morrendo”. Está nada, tá é vivendo e morre se não fizer. Quando você começa a fazer hemodiálise, o rim não está funcionando mais, eu estava quase batendo as botas. Sou adepto da hemodiálise, encaro-a de forma positiva.

- O que vê de positivo?

- Na hemodiálise pode-se comer tudo. Como aquele pastel de feira enorme e a hemodiálise limpa tudo! Levo, religiosamente, sonho de valsa, bolo, bomba. Fico muito chateado quando vejo pessoas que fizeram o transplante e falam da hemodiálise como uma coisa terrível. Você não tem a função renal, mas tem a hemodiálise que a substitui! E se tiver alguns cuidados leva uma vida quase normal. Como eu tive que tirar uns pólipos da bexiga, os médicos disseram que tinha de esperar dois anos para ver se desenvolve um câncer. Neste mês vence o prazo. Aí eles vão dizer o que fazer. Se eu estiver em condições físicas, faço o transplante.

- Suas condições físicas ficaram muito prejudicadas?

- Eu tive estafa em 2001, estresse profundo, de trabalhar. Fiquei com anemia. Pensei que fosse morrer. Estava num desânimo terrível, não tinha coragem de nada, levantar o braço era uma dificuldade. Me chateava muito meu estado de fraqueza. Sabia que se bobeasse, morreria. Eu tinha de lutar. Em 2002 tive um ano de cão e em 2003 já estava bem melhor. Escrevi uma peça em 2001, A Luta Secreta de Maria da Encarnação, e o pessoal ficou assustado, tive de digitar no sacrifício. Como autor foi meu último trabalho.

- Há quanto tempo estava longe da tevê?

- A última novela que fiz foi A Próxima Vítima (1995). Depois fiz participações, mas conforme o esquema. Viajar não pode. Tenho que fazer hemodiálise com uma diferença máxima de três dias. Em Terra Nostra fiz uma participação nos primeiros capítulos e morri logo. Depois fiz uma participação em Esperança de cinco capítulos. Coisas assim não atrapalham. Minha vida gira em torno da hemodiálise.

- Quem o convidou para Metamorphoses?

- A Tizuka (Yamasaki). Ela não me força a nada, respeita integralmente os dias de hemodiálise. A produção está muito cuidada e muito cuidadosa, principalmente para mim, respeitando muito os limites. Eles vêm me buscar em casa e me levam. Lá, tem uma assistente de direção que me acompanha o tempo inteiro. Evitam que a gente se desgaste.

- Tem algum sonho profissional?

- Eu não gostaria de parar, mas também não quero me matar de trabalhar. Isso estressa mesmo, cansa. Gostaria de ter a possibilidade de fazer o que tenho vontade. Trabalhar é até aconselhamento médico, exercitar a cabeça, não se deixar levar. Essa tendência à letargia mata. Segui o processo de um companheiro meu de hemodiálise e vi que ele começou a perder a vontade e morreu – não por causa da insuficiência renal. Minha perspectiva de vida já é longa hoje.

Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 95598