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Documento Número: 1688
Jornal/Revista: Jornal do Brasil
Data de Publicação: 09/11/1977
Autor/Repórter: Paulo Maia

UM CENSOR CHAMADA CHICO ANÍSIO

É muito comum encontrar na seção de cartas que o Caderno B publica reclamações de profissionais liberais contra autores de novelas, no que se refere à indevida utilização de conceitos a respeito de sua categoria nas séries de ficção. Um crítico de televisão com alguma militância, como eu, recebe, da mesma forma, sugestões de leitores e também de colegas para criticar autores de novelas quando fazem referências desairosas seja retratando médicos bêbados (como o Dr Juarez, de O Bem-Amado) seja por mostrar repórteres chatos e incompetentes, além de sensacionalistas, como eram mostrados por Janette Clair os coleguinhas em Duas Vidas. Felizmente, foi possível até hoje deixar de sucumbir às tentativas de autodefesa de categorias profissionais como a nossa dos jornalistas.

Agora, leio este jornal e vejo, muito surpreendido, que o grande humorista brasileiro Chico Anísio não conseguiu resistir e caiu na bobagem de defender a também muito honrada categoria dos artistas dos possíveis ataques a ela desferidos na novela Espelho mágico pelo autor Lauro César Muniz e pelo diretor Daniel Filho. Em entrevista publicada no Caderno B. e assinada por Zenilton Bezerra, da sucursal de Curitiba, o preclaro cearense cometeu afirmações perigosas do gênero: Não existe na história da televisão uma artista mau-caráter como a Cintia Levi (interpretada por Sônia Braga, a Tigresa) nem há humoristas decadentes como o Carijó (interpretado com muita criatividade pelo veterano Lima Duarte). Afirmar isso é tão perigoso como dizer que não existem médicos bêbados, sociólogos irresponsáveis ou jornalistas incompetentes e sensacionalistas. Porque, afinal de contas, como em qualquer atividade exercida por seres de carne e osso, devem existir no show business os bons e os maus caracteres, que podem parecer a uns e a outros boas ou más pessoas, desinteressadas ou carreiristas, santos e oportunistas. Nem todos os humoristas são necessariamente exemplos nítidos de sucesso como o é o próprio Chico Anísio, nem todas as atrizes de telenovela podem do dia para a noite ser canonizadas pelo Vaticano.

Apesar de até agora eu ter sido um defensor da novela das oito da Globo, nunca estranhei as críticas que por ventura são feitas, em que a novela é atacada por mostrar um lado muito cor-de-rosa da vida do artista. O cachimbo faz a boca torta. Não se pode esperar de um jornalista um ataque concentrado e ferino à sua atividade profissional, ou de um engenheiro um pronunciamento que comprometa definitivamente sua profissão. Se do médico se exige a autodefesa da categoria pelo código de ética, também se pode esperar que uma emissora de televisão, um autor, um diretor e um elenco de profissionais não desnudem completamente suas mazelas e seus defeitos próprios. São distorções profissionais comuns e elas até existem em Espelho Mágico, mesmo porque também há uma censura rigorosa e draconiana que procura ocultar os aspectos menos róseos da realidade brasileira, e essa censura atinge particularmente a televisão e aquilo que é levado ao ar para mais gente, ou seja, nos seus horários nobres.

Por isso tudo, e por partir de um homem lúcido politicamente e um excelente profissional de televisão ele mesmo, que deve conhecer bem seu metier e seu campo de trabalho, a crítica de Chico Anísio à novela das oito da Globo não é apenas improcedente, como até mesmo surpreendente. E serve para confirmar uma velha tese, segundo a qual o brasileiro não costuma resistir à menor crítica. Se um crítico literário fala mal de um romance, pode ficar certo que perdeu a amizade do autor, pois tudo é levado para o campo da intriga e da inimizade pessoal. A vida do crítico nesses países tropicais e latinos tem sido dura, justamente porque ele é obrigado a elogiar tudo o que dele se aproxima e criticar severamente o que dele está distante. Tudo pode funcionar bem na base da amizade pessoal e do "compadrismo", da "igrejinha" e dos grupos. Assim, como uma atitude tomada pessoalmente, um "não fale assim de amigos meus", creio, deve ser tomado o desabafo de Chico Anísio ao repórter do JB.

Classificando Espelho Mágico de uma "brincadeira de mau gosto" assim, a crítica do humorista pode até ser considerada como uma espécie de projeção: apesar de ser um grande sucesso e de merecê-lo (no caso específico de Chico City, porque os textinhos interpretados no Fantástico são cada dia mais cacetes e menos engraçados), o criador do fabuloso Alberto Roberto se põe, durante alguns segundos, na pele do humorista fracassado, que é Carijó. E se ofende por ele. Como aconteceria se eu, por exemplo, viesse a público atacar Janete Clair ou Dias Gomes pelos débeis mentais que eram seus repórteres nas novelas Duas Vidas e Saramandaia.

Esse tipo de censura, partindo de gente responsável, não pode ser admitido, pois já temos uma censura estatal, violenta e arbitrária. Agora se, além da polícia federal, cada profissional liberal se der o luxo de censurar textos de telenovelas porque eles não representam aquilo que considera o ideal de suas profissões, o melhor é parar tudo e voltar aos tempos da Inquisição. A crítica de Chico Anísio, mesmo partindo de quem partiu, é fascista e desnuda uma perigosa faceta de censor num artista cujo humor é feito normalmente como um exercício e uma busca da liberdade.

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Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 1688