JORNAL DO BRASIL

Caderno: Idéias

Página: 02

Data da Publicação: 26 de agosto de 2006

Autor/Repórter: Cláudia Nina

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Leitores e leitores

 

Livros que contam a história das bibliotecas não são novidades. Há vários deles, dos mais complexos, que remontam a tempos longínquos e falam sobre o maior número de bibliotecas que a memória dos arquivos alcança, àqueles que se atêm ao acervo das bibliotecas de um autor específico, como A biblioteca de Machado de Assis (Top Books/ABL), organizado por José Luís Jobim. Se desde Alexandria a Jorge Luiz Borges o sonho de uma biblioteca universal, capaz de conter o mundo, persegue a imaginação de intelectuais, a idéia de escrever um livro que contenha todas as bibliotecas - reais, imaginárias ou virtuais - também persiste.

 

Um dos mais recentes trabalhos neste sentido é o do argentino Alberto Manguel, A biblioteca à noite (Companhia das Letras). O ponto de partida é a sua própria biblioteca, reunida em uma aldeia francesa, num galpão medieval em ruínas. Na obra de Manguel, os livros são pretexto para reflexões oportunas sobre temas como o destino da memória impressa, o futuro das bibliotecas no mundo digital, os autores e suas bibliotecas, a destruição dos livros através da história e a relação dos leitores e a internet. Contra este último, o golpe é forte.

 

Uma breve parada neste item: a web. Manguel, que nasceu em Buenos Aires, hoje cidadão canadense, passou a infância em Israel, estudou na Argentina e vive no interior da França, é ensaísta, organizador de antologias, tradutor, editor e romancista. Passou meio século colecionando livros. Seu apego ao papel não o faz um detrator do mundo on-line. Mas o que diz soa bastante sensato: quando um leitor entra na web, seu movimento de leitura é muito mais veloz do que profundo.

 

Se, por um lado, a leitura nas "telas brilhantes e espectrais" possibilitou uma série de liberdades, como acontece em lugares onde há livros proscritos, como no Irã, onde os estudantes têm acesso à literatura proibida, por outro, Manguel nos diz que a biblioteca que guardava tudo - referindo-se à Alexandria - transformou-se na biblioteca que guarda qualquer coisa. Fala-se de um aprisionamento ao superficial.

 

Escreve o autor: "Mas a web é um instrumento. Não deve levar a culpa por nossa preocupação superficial com o mundo em que vivemos. Sua virtude está na brevidade e na multiplicidade da sua informação; seria demais pedir que nos desse ainda concentração e profundidade (...) A web tampouco nos dará cama e comida em nossa passagem por este mundo, não será nem a gruta de Circe nem a ilha de Ítaca. Nós - e não nossas tecnologias - somos os únicos responsáveis por nossas perdas, e não podemos culpar ninguém por nossa decisão deliberada de preferir o esquecimento à recordação".

 

Por mais recursos que a internet coloque ao alcance do mouse, é pouco provável que uma biblioteca virtual, por mais completa que seja, consiga fazer com que a humanidade desista de reunir seus livros reais em bibliotecas reais. O futuro dos livros de papel - muito já se especulou com o advento dos e-books, que fracassaram - ainda é apenas isto: especulação. Manguel acerta, entre tantos outros, num ponto importante: se os leitores acessam mal as informações da rede, não é culpa da rede, mas de quem trabalha com ela. Exemplo: juntar pedaços de trechos puxados da internet e querer parecer erudito quando o que se faz é apenas a colagem de um monstro Frankeinstein, em que o estilo da cabeça do texto não combina com o pé, como o fazem muitos estudantes ao entregarem seus trabalhos de fim de curso, por exemplo. Mas é a opção: velocidade no lugar de profundidade.