PUC-Rio

Documento Número: 234710
Jornal/Revista: Ed. Diadorim
Data de Publicação: 11/07/1994
Autor/Repórter: João Luís van Tilburg

O TELESPECTADOR E A RELAÇÃO ESPAÇO TEMPO

A presente colaboração objetiva iniciar a discussão sobre as condições específicas em que se encontra o telespectador em virtude uma nova modalidade de espaço-tempo criada pela linguagem televisiva.

A fim de poder caracterizar com pertinência esta modalidade impõe-se percorrer, embora em poucas pinceladas, a algumas questões relativas à singularidade de observação do espaço mediada pela câmera. Contudo, a natureza desta singularidade de observações somente tem consistência após o aprofundamento de algumas indagações de ordem axiológica, relativas ao espaço. Em outras palavras, apresenta-se como exigência, antes de qualquer abordagem, o tratamento da questão do território como resultado de uma construção cultural. A relevância deste enfoque se desvela no momento em que o Homem "descobre" a forma esférica do planeta Terra.

A partir destas observações introdutórias, abre-se a discussão sobre a nova modalidade do espaço-tempo criada pela linguagem televisiva, especificamente a partir de reações de telespectadores ao se verem envolvidos por um novo estado de ìnterlocutoriedade.

1 - O ESPAÇO - UMA CONSTRUÇÃO CULTURAL

Para se localizar no espaço, o ser humano trabalha culturalmente este mesmo espaço, de tal forma que, "tout-court", ele é inexistente, ocorrendo somente na forma de "território", pois resulta de uma construção mental e, por conseguinte, é uma atividade axiológica, em virtude do ato de classificação e hierarquização dos objetos num espaço constituindo-o em "território". Em resumo, o território é consequência da organização de pessoas e objetos que se encontram num determinado espaço. Não importa se este espaço seja a casa, a rua, o bairro ou o local de trabalho. A construção mental do espaço é, concomitantemente, resultado de uma estratégia de definir ou denominar o lugar em que alguém se encontra. Neste sentido, o que difere, por exemplo, o território-casa do território-bairro, é decorrente das características sociais estabelecidas por um espaço dado, como também o inverso é verdadeiro.

A importância axiológica desta estratégia sobressai os olhos de todos, ao se verificar as resistências encontradas nos séculos XII a XVI, às evidências da forma esférica do planeta terra. Alguns combatiam estas evidências por motivos religiosos, citando, por exemplo, uma inscrição perto do Santo Sepulcro, em Jerusalém: "Hic Deus rex noster antes secula operatus est salutem in médio terrae" (1).

Outros se refutavam lançando mão de argumentos oriundos da Física contemporânea: "Os que defendem a existência dos antípodas têm um sentimento razoavel? Há alguém tão extravagante para se persuadir de que há homens que tenham os pés no alto e a cabeça embaixo, que tudo o que está deitado neste país esteja suspenso naquele lá; que as gramas e as árvores lá cresçam descendo, e que a chuva e o granizo lá caiam subindo?" (2).

Entretanto, diante das evidências comprovadas por navegadores, procurava-se a conciliação entre "fé" e "certeza", como Iehand de Mandeville, um navegador inglês que procurava o paraíso, mas chegou somente "ao pé da montanha do paraíso terrestre", que ficava "além de desertos e trevas" (3). Em seus manuscritos compilados em 1366, ele escreve: ''E saiba que, segundo o que eu pude perceber sem compreender, a terra do Preste João, Imperador da Índia, está abaixo de nós. Pois, indo da Escócia e da Inglaterra em direção a Jerusalém, sobe-se sempre. Pois a nossa terra fica nas partes inferiores da Terra, em direção ao ocidente, e a terra do Preste João fica na parte inferior, em direção ao Oriente. Lá, eles têm o dia quando nós temos à noite, e ao inverso, eles têm a noite quando temos o dia. Pois a terra e o mar têm a forma redonda, como eu já havia dito antes, e se se sobe por um lado, desce-se do outro. Ora, ouviram dizer antes que Jerusalém está no meio do Mundo e isso se vê, pois, uma lança fixada na terra, ao meio-dia, não faz sombra em lugar algum, e Davi testemunha que é no centro da Terra quando ele diz: "Et operatus est salutem in medio terrae etc.'' (4).

Estas afirmações demonstram que a concepção do espaço físico é resultante da estratégia de posicionamento no espaço, a partir de uma referência axiológica. Em primeiro lugar, o espaço é concebido numa perspectiva social, que resulta numa determinada concepção da territorialidade. Assim, ao se considerar a cidade de Jerusalém o centro do Terra, está consolidada uma projeção de importância política, que se perderia caso fosse adotada a forma esférica da Terra. Da mesma maneira, atribui-se um poder ao conhecimento científico, taxando-o como valor absoluto e imutável, mesmo sendo seu substrato um raciocínio decorrente da imaginação, que faz o filosofo indagar: "as gramas e as árvores lá cresçam descendo e , (...) a chuva e o granizo lá caiam subindo?'' Não é sem razão, então, que Isaac Newton (1642-1727) combate no seu livro Princípios Matemáticos, o senso comum calçado no imaginário: ''Deixei (... ) de definir, como conhecidíssimos de todos, o tempo, o espaço, o lugar e o movimento. Direi, contudo, apenas que o vulgo não concebe essas quantidades senão pela relação com as coisas sensíveis. É daí que nascem certos preconceitos, para cuja remoção convém distinguir as mesmas entre absolutas e relativas, verdadeiras e aparentes, matemáticas e vulgares'' (5).

Percebe-se que para o pensamento cosmológico, a territorialidade não é apenas uma localização geográfica, e está claro que a concepção mental do espaço é formada a partir de representações sociais, derivadas de ideias em relação à forma da Terra. No caso da cidade de Jerusalém evidencia-se a consubstanciação da religião cristã com o poder e, no que diz respeito aos argumentos emprestados da Física, a consubstanciação da imaginação - isto é, de uma "percepção deformada" criada a partir do conhecimento visual imediato - com o conhecimento. Em resumo, sendo o espaço o resultado axiológico de uma construção mental, também a casa em que se encontra um televisor, antes de ser um espaço físico em que se encontra este aparelho, é resultado de uma construção mental.

Ao estudar, portanto, a audiência televisiva há de ser considerado que esta, ao observar um espaço a mais - trazido por ondas hertzianas para dentro da sua casa - está num espaço que é seu território-casa. A pertinência desta observação encontra um fundamento singular na afirmação de Jean-Pierre Raison: "A casa é uma pessoa, e esta personificação procura uma segurança fundamental. A casa parece essencial para a definição do homem: no País Basco - caso extremo, sem dúvida - pode-se usar o nome de uma casa em vez do nome da própria família; em muitas regiões, a casa tomou o nome dos seus fundadores e herda-se ao mesmo tempo o nome e a casa; de fato, se se pode dizer, o nome da casa'' (6).

Sendo a casa algo essencial para a definição do homem, indaga-se pela especificidade da relação criada entre o território-casa do telespectador e o espaço projetado na tela do televisor. Este espaço é singular por ser sua observação mediada pela câmera.

2. A SINGULARIDADE DO ESPAÇO MEDIADO PELA CÂMERA

No seu estudo Guerra e Cinema, Paulo Virilio observa que os primeiros filmes e fotos tirados de avião, do campo de batalha, durante a Primeira Guerra Mundial, confundiam os generais. Mas, para os pilotos de combate ''... os efeitos especiais já existiam e se chamavam looping, 'folha-seca", "grande oito"... A partir de então, a visão aérea escapa à visão euclidiana, tão fortemente experimentada pelos combatentes nas trincheiras. A aviação abre túneis endoscópicos, é o acesso mais surpreendente possível à visão topológica (...)'' (7).

Ao contrário dos pilotos, que se adaptaram à modalidade vertical de observar um objeto na forma peculiar de "plongé", os generais encontraram dificuldades na leitura das "reproduções químicas" das trincheiras, em virtude de sua percepção euclidiana do espaço, que só permitia observar as fortificações do inimigo no plano horizontal. Por acreditarem somente na percepção imediata, os generais continuavam a dar preferência à cavalaria para o reconhecimento das fortificações do inimigo.

A incompatibilidade com a nova modalidade de ver um objeto revela que uma nova técnica de se apropriar do mundo exterior à consciência faz com que se possa pensar este mundo de maneira particular e efetivar, de um modo singular, relações com este mesmo mundo.

Seguindo esta linha de raciocínio, observar uma pessoa ou um objeto com a mediação da imagem televisiva altera, de certo, a relação com o universo exterior ao telespectador em vista de uma nova modalidade da relação espaço-tempo. Por esta razão, parece-me pertinente estudar a natureza que qualifica esta alteração.

3. UMA NOVA MODALIDADE DE ESPAÇO-TEMPO

3.1. O ESPAÇO DE INTERLOCUTORIEDADE

O estudo dos componentes próprios à linguagem televisiva revela a existência de três categorias de campos de espaço: a primeira é gerada pelo plano/enquadramento que preenche a tela do televisor; a segunda é aquela que existe, em virtude de várias modalidades de projeção, para fora das telas. Estas duas categorias de campo de espaço em nada se diferem do espaço cinematográfico. É, pois, precisamente na terceira categoria que se encontra o elemento que faz com que a televisão deixe de ser cinema. Esta categoria do campo de espaço coincide com o espaço em que o telespectador se encontra no momento em que assiste a um programa de televisão. É o espaço que suscita um processo comunicacional caracterizado por um estado, com características próprias, de interlocutoriedade.

Entende-se por "estado de interlocutoriedade" o resultado do ato do locutor/apresentador se dirigir ao telespectador e ao dirigir-se ao telespectador o locutor/apresentador projeta um espaço na casa do primeiro, espaço este decorrente da interlocução verbal e visual, já que o locutor/apresentador dirige-se ao telespectador pela palavra, ao mesmo tempo que o entreolha. Em virtude desta qualidade de interlocução, o discurso televisivo, na sua totalidade, se ancora no campo de espaço externo ao televisor. Um exemplo de programa que explora, de modo espetacular e ostensivo, o espaço de interlocutoriedade, o "Você decide", da Rede Globo de Televisão. Nele se verifica, como parte da natureza da linguagem televisiva, a mais variada e diversa "construção" de campos de espaço - não tendo como limites os contornos internos da tela do televisor - por meio do chroma-keye, com a intermediação da 'edição de imagem' (10). Confrontamo-nos, pois, com um novo tipo de relação espaço-tempo.

Em virtude da coexistência das três categorias de campos de espaço televisivo, a percepção do real televisivo e as relações entre os telespectadores e o real não-televisivo refletem, de uma ou de outra maneira, o mundo que se constrói ou que se pensa. Nesta perspectiva, evidencia-se que a maneira de pensar o mundo, hoje, tem algo a ver, embora não de modo exclusivo, com o campo interno de espaço televisivo e, simultaneamente, com aquele do estado de interlocução; ambos simultaneamente gerados numa fração de segundo pela linguagem televisiva.

O campo de espaço externo, fisicamente inexistente por ocorrer somente em virtude de um ato sugestivo, desenvolvido por um processo comunicacional com características específicas - por ser uma projeção - coincide, em termos geográficos com a casa do telespectador. Entretanto, a construção deste espaço não é somente o resultado da localização visual. O sentido próprio do espaço e, por conseguinte, do tempo, desenvolve-se "num espaço intersubjetivo, em que escuto também quer dizer escuta-me", conforme observa Roland Barthes, que assim continua seu raciocínio: É, sem dúvida, a partir desta noção de território (ou de espaço "apropriado", familiar, domesticado-doméstico) que mais facilmente se compreende a função da escuta, na medida em que o território se pode definir essencialmente como o espaço da segurança (e, como tal, destinado a ser defendido): a escuta é essa atenção prévia que permite captar tudo o que seria susceptível de perturbar o sistema territorial (...) (11).

Nesta perspectiva, há de ser enfatizado, primeiro, que as imagens são produzidas para serem vistas, e, segundo, que a percepção do espaço, no qual se opera o fenômeno da interlocutoriedade, se efetua, também, pela audição, por esta projetar o corpo, mediante sugestão da dimensão profundidade no espaço, em virtude da ressonância do som.

3.2. A SINGULARIDADE DO ESPAÇO e TEMPO TELEVISIVOS

O espaço de interlocutoriedade projetado pela linguagem televisiva acrescenta à casa ou território uma nova dimensão, por ampliar os horizontes, construídos não pelas paredes da habitação, mas pelo fato da vida cotidiana se misturar com relações que outrora se limitavam à presença imediata de semelhantes (vizinhos, amigos e colegas). Nos limites do campo de observação imediata, o televisor se caracteriza como um móvel que, em virtude da sua natureza de mediação, põe o telespectador numa situação labiríntica (12). Por causa do espaço enquadrado pela câmera, o telespectador perde a noção exata da construção do espaço físico em que se encontra, tornando-se um espaço não-marcado, mesmo o telespectador reconhecendo várias pessoas e/ou objetos. Isto porque a sequência e a composição icônica dos mais diversos e variados espaços televisivos permitem que o telespectador viaje, em frações de segundos pelo mundo afora, tornando-se possível até mesmo a bi-localização (13). Nesta perspectiva, a coesão manifesta pelas relações conhecidas, que organizam, até há pouco tempo, o território, está sofrendo um processo de desintegração do território localizado e, simultaneamente um processo de integração com o território planetário.

Este fenômeno se caracteriza ainda por outro aspecto: a nova relação do telespectador com seu mundo externo realiza-se concomitantemente com sua relação com o tempo. Neste sentido é oportuno, em termos análogos, retomar o diário do navegador inglês, quando este trata da forma esférica da Terra, ao descrever a região "além Jerusalém": "Lá eles têm o dia quando nós temos a noite, e ao inverso, eles têm a noite quando temos o dia" (14).

Aparentemente, Iehan de Mandeville se referia só ao tempo solar, que é simplesmente cíclico. Seu diário - no qual anotava as observações pessoais - revela, entretanto, a existência do tempo coletivo, em sua formulação "nós - isto é: "eu e você" - temos a noite quando eles - [in pártibus infidélium (15)] - têm o dia". A descoberta desta peculiaridade do tempo se caracteriza pela existência de uma outra sucessão de acontecimentos, até aquela data não conhecida, ou seja, a simultaneidade diferente de eventos, nos tempos cíclico e coletivo. Surge, então, nova unidade do mundo fenomênico, isto é, uma nova configuração da Terra.

Estas constatações permitem concluir que, nos séculos XII a XVI, a humanidade, que se conhecia a si mesma, como tal, se confrontou com uma nova relação de espaço-tempo, o que resultou numa nova concepção do Universo e, por conseguinte, de si mesma. Assim, em termos análogos, a descoberta de uma outra modalidade de espaço-tempo - a televisiva - contribui para que esteja surgindo uma nova concepção do Homem. Hoje, pois, acrescenta-se ao tempo individual (biológico e psicológico), ao tempo coletivo (solar, político, religioso, escolar etc.) e ao tempo físico, o tempo televisivo (a transmissão ao vivo), ou seja, a coincidência da ocorrência do fato com sua transmissão, independente do espaço-tempo, geograficamente localizado em termos de percepção imediata. A natureza deste tempo obriga a definir seu estatuto.

É, pois, a coincidência de dois tempos locais - o da casa e aquele do acontecimento - que concede ao telespectador a faculdade de deslocamento no espaço sem romper com o tempo, seja este individual ou coletivo. Em resumo, confrontamo-nos com uma modalidade de tempo que modifica, por completo, a relação espaço-tempo. Da mesma forma como há séculos atrás, com a queda da concepção euclidiana da Terra, a soberania da "verdade" do conhecimento "científico" entrou em declínio - arrastando, por sua vez, o poder territorial baseado em concepções metafisicas e religiosas - hoje resulta da nova modalidade de relação espaço-tempo (o espaço e tempo televisivos) algo de difícil avaliação para o pesquisador. Isto porque ele está envolvido no mesmo processo.

Em resumo, espaço e tempo não são mais nem um e nem outro como outrora, por existir uma nova categoria de espaço e tempo. Quando se trata do tempo relativo - o tempo da vida cotidiana - e da coincidência da ocorrência do fato e de sua transmissão - "ao vivo" - estes nem mesmo têm algo a ver com o tempo solar que, durante séculos regia a vida em sociedade. Esta substituição, mesmo parcial, dos tempos individual e coletivo - que caracterizava a vida em sociedade e legitimava o calendário das instituições (festas religiosas e nacionais) - perde seus valores absolutos, em virtude da existência do tempo televisivo. Parece-me que, por exemplo, a coincidência de tempo entre o Campeonato Mundial de Futebol e as eleições de 1994 ou os acontecimentos da morte do piloto de Fórmula 1, Ayrton Senna, demonstram que o tempo televisivo se impõe ao tempo coletivo. O tempo televisivo intervém, sem dúvida, nos ciclos de tempo até há pouco tempo conhecidos.

3.3. O TELESPECTADOR E A NOVA MODALIDADE DE TEMPO-ESPAÇO

A importância axiológica desta nova relação espaço-tempo - parte integrante da casa - é revelada por algumas constantes, percebidas em aproximadamente 3.000 cartas enviadas por telespectadores a artistas de telenovelas da Rede Globo. (16)

Nesta correspondência salta aos olhos, em primeiro lugar, a relação de intimidade construída pelo telespectador-remetente com os artistas de novelas.O telespectador se dirige ao artista como se fosse seu vizinho, morador do bairro, ou alguém da família (enviando-lhe um cartão postal da Itália onde se encontra de férias) ou ainda um amigo (parabenizando-o por seu aniversário), sem mencionar uma infinidade de conselhos que abordam os mais variados aspectos da vida particular ou profissional do artista. Em resumo, este é percebido como alguém do restrito círculo de pessoas amigas do telespectador que se encontram num determinado espaço ou território comum. A consubstanciação da atuação do imaginário - resultado do espaço projetado de interlocutoriedade - e do conhecimento se manifesta com seus traços já familiares ao senso comum ou, na formulação de Isaac Newton, do "vulgo".

Como amigos fazem parte do cotidiano vivido no mesmo espaço, o tom informal de conversa sobressai nestas cartas, permitindo o clima de familiaridade, de intimidade e de confidência.

Neste contexto, não é de surpreender que uma adolescente, ao comentar a presença, pela primeira vez, de uma atriz numa novela, escreva: "Gabriela Maria, eu não te conhecia antes" (17). Esta formulação não deixa dúvidas de que a linguagem televisiva cria, no mínimo, a sensação de um estar juntos.

Esta sensação não sofre alterações quando se trata de um personagem-vilão, cujo comportamento não impede que o ator, que o representa, receba, em media, 6 a 7 cartas por dia. O aspecto físico do ator (semelhante ou não) e a criação artística do personagem não obstruem a relação de interlocução como ressalta uma adolescente "Adorei o final da novela [...] pena que você foi tão malvado no decorrer da novela e não ficou bonzinho no final, mas, como diz o ditado, "pau que nasce torto, morre torto", não é?" O [nome do personagem] não ia mudar nunca. Eu sei que você não se parece com o [nome do personagem] apesar da aparência física'' (18).

Outra adolescente expressa a construção mental do espaço de interlocutoriedade de outra forma: "É com anseio que estou lhe escrevendo esta outra carta, para lhe dizer que gosto de você não por ser um artista; gostei de você como uma pessoa humana, muito especial, desde a primeira vez que vi você pela TV" (19).

Também a modalidade "tempo" como a ocorrência coincidente de um mesmo fato expressa-se nesta correspondência com os artistas, como evidencia uma telespectadora": "Donato Bernardo, boa noite, (....)(20). Nesta perspectiva confirma-se uma nova modalidade da relação espaço-tempo.

A inter-relação destas percepções, decorrentes do espaço e do tempo do estado de interlocutoriedade permite entender a observação de outra telespectadora que, após ter revelado aspectos da sua vida particular, até íntima, escreve: "Sei pouco de você; não acredito muito o que dizem as revistas sobre você'' (21).

Esta declaração de "fé e confiança" - atos decorrentes do merecimento por parte do artista, de credibilidade - só obtém inteligibilidade em virtude da certeza de um "estar juntos". Esta certeza se ancora num comportamento de segurança gerado por uma das características próprias do "território", característica esta formulada por Roland Barthes, como um "espaço de segurança e como tal destinado a ser defendido'' (22). Por estar na sua própria casa, a remetente-telespectadora decide revelar algo da sua vida íntima (23), estabelecendo, ao mesmo tempo, uma condição: por repudiar intrigas e "fofocas" publicadas em revistas, ela merece, por parte do artista, um tratamento igual. Por se encontrar, no seu "território" particular, com o artista, acreditando somente nos méritos conotados pela projeção icônica, ela defende este direito fundamentado em "sei pouco de você". De outro modo - e aí vem o ato de defesa - não acredita nas informações publicadas em revistas.

4. A TÍTULO DE CONCLUSÃO

A nova modalidade de espaço-tempo contribui para consolidar - ao que me parece - um novo estado de consciência, no que diz respeito à localização no espaço e no tempo. Recorrendo à formulação de Heidegger, indaga-se como podemos definir, hoje, o Lebensraum? A ordenação dos acontecimentos não segue mais a sucessão temporal localizada por nos confrontarmos com uma nova igualdade de espaços e tempos. Embora sua duração se iguale em termos de sucessão de fatos, no que diz respeito ao tempo do território, este difere do tempo ao qual a humanidade se habituou, no decorrer da sua história. Neste sentido, o tempo visível não é mais o temporal, a não ser o tempo biológico-individual, que perpassa o espaço de tempo entre a concepção e a morte de cada telespectador. Em outras palavras: como há de ser considerada a nova relação espaço-tempo no que diz respeito à sua inteligibilidade axiológica por ser cada telespectador um portador de cultura? Em resumo, indaga-se: como o telespectador concebe a relação espaço-tempo? Isto remete aparentemente a uma falsificação de dimensões espaço-tempo da mesma forma como não fora percebida a forma esférica da Terra, há séculos atrás. Nesta perspectiva na pesquisa qualitativa em audiência televisiva, o critério referente à localização da relação espaço-tempo qualificará a ordenação, classificação e hierarquização dos dados primários.

Inicia-se, parece-me, uma discussão sobre as condições específicas em que se encontra o telespectador, morador de um território, condições estas que, em virtude da sua natureza, estão definidas por uma fisionomia própria. A analogia traçada com a cosmologia tradicional desenvolvida nas circunferências da religião e da filosofia antes da revolução copernicano-galileana tem como objetivo único trazer para a discussão uma possível concepção que o Homem está desenhando de si mesmo, ou seja, um projeto.

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(1) "Antes dos séculos, Deus, nosso Rei, efetuou aqui, no centro da Terra, a salvação". RANDLES, w.g.l. Randles Da terra plana ao globo terrestre, Campinas: Ed. Papirus, 1994, p. 22.

(2) Idem, p. 16.

(3) Pertinente é acrescentar que outros navegantes daquela época fizeram numerosas tentativas para localizar o Paraíso do qual Adão e Eva foram expulsos.

(4) Idem, p. 23.

(5) NEWTON, Isaac. Princípios matemáticos, in OS PENSADORES, São Paulo: Editor Victor Civita, 1979, 9. 8 (grifo meu).

(6) RAISON, Jean-Pierre. Habitação, Lisboa: Imprensa Nacional, Enciclopédia Einaudi, tomo VIII, p. 341.

(7) VIRÍLIO, Paul. Guerra e cinema. São Paulo: Ed. Página Aberta, 1993.

(8) Esta categoria de campo de espaço espaço-fora-do televisor é extremamente complexa e conhece seis variações. Quatro destas são projetadas em volta dos quatro cantos da tela, e as duas restantes - sem a mesma característica espacial ou geográfica - são projetadas em campos de espaço sugeridos: no fundo da tela, atrás dos bastidores ou do horizonte e outro, atrás da câmera.

(9) O "estado de interlocutoriedade" conhece duas modalidade: direta e indireta. A modalidade direta se concretiza no momento em que o apresentador/locutor se dirige ao telespectador; a indireta se dá por ocasião, por exemplo, de novelas. Sendo entrevistados, os artistas se dirigem sempre ao telespectador como sendo "meu público", gerando a sensação de um estar juntos no momento da transmissão de novela. A avalanche de cartas que, diariamente, chega nas Emissoras de TV, comprova a existência do "estado de interlocutoriedade''.

(10) Por intermédio da 'edição de imagem', a construção do ''espaço interlocutório'' cria campos de espaço, destruí-los, decompô-los, achatá-los, multiplicí-los, girá-los, etc. Basta ainda programar o computador para comandar a aceleração da imagem eletrônica, de tal forma que velocidade desta se torne muito próxima à de nossa pensamento. Desta forma, o espaço é produzido não mais para ser só observado, mas também para ser constatado numa fração de segundo, tal a aceleração com que se move, localizando-se e descolando-se dentro e fora dos campos de espaço gerados, e projetando-se, pelo enquadramento do televisor. A legibilidade da imagem se reduz, em muitos casos, a simples perceptibilidade.

(11) BARTHES, Roland et alii. Escuta. Lisboa: Rd. Imprensa Nacional, Enciclopédia Einaudi, tomo XI, p. 137-138.

(12) Jean PETITOT distingue três tipos empíricos de situação de referência:

1) Há, em primeiro lugar, a situação na qual E (espaço) é um espaço marcado, tornado heterogêneo por pontos ou zonas fenomenologicamente distinguíveis. A estratégia (para localizar) consistirá então essencialmente em identificar esses pontos de referência. Para isso é necessário que o sujeito S tenha uma visão relativamente global do espaço E.

2) Há, em seguida, a situação na qual o sujeito S não pode dispor de uma visão relativamente global do espaço E, e isso quer o espaço seja ou não marcado, isto é, quer existam nele ou não pontos de referência. Nesse caso, o sujeito torna-se um sujeito míope, incapaz de se referir senão localmente em relação ao seu circunvizinho imediato e não em relação ao espaço E. Poder-se-ia chamar a este tipo de situação, situação labiríntica (...).

3) Finalmente, há a situação em que o sujeito é dotado de uma visão global do espaço E (isto é, trata-se de um observador), mas onde o espaço E é um espaço não-marcado, um espaço sem pontos de referência, um espaço homogêneo. É o caso de um navegador no oceano, ou de algum que percorre o deserto. Em Sistemas de referência, Lisboa: Ed. Imprensa Nacional, Enciclopédia Einaudi, tomo IV. Ed. Imprensa Nacionmal, p. 72-73.

(13) Em determinadas circunstâncias como, por exemplo, por ocasião de cobertura de morte do piloto da Fórmula 1, Ayrton Senna, a natureza da linguagem televisiva se apresenta na sua essência: a ruptura absoluta da relação espaço-tempo contruida pelo espaço de territorialidade. O Jornal Nacional permitiu ao telespectador acompanhar os desdobramentos deste acidente em Ímola (Itália), Londres, Roma, Paris, Portugal e São Paulo em uma só reportagem ao vivo.

(14) RANDLES, op. cit.

(15) "Nas terras ocupadas pelos infieis'', uma formulação política naquela época.

(16) Estas cartas foram objeto de um Projeto Integrado de Pesquisa, financiado pelo CNPq.

(17) Carta nº 1142. O nome da atriz é fictício.

(18) Carta registrada sob ''carta fãs''.

(19) Idem.

(20) Carta nº 0713.

(21) Carta nº X061

(22) Nota nº 11

(23) Nesta discussão, pouco importam, parece-me, os motivos reais (solidão, rejeição, etc.), que levam a remetente a se abrir. Interessam, isto sim, as condições espaço-tempo que criam o "clima" para que este ato possa se realizar.

Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 234710