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Jornal/Revista: Manchete
Data de Publicação: 22/07/1989
Autor/Repórter: Tarlis Batista

KANANGA DO JAPÃO

A Rede Manchete recria as paixões, os conflitos e o brilho de uma época

Como se faz uma superprodução

Quando a Praça 11, nos anos 30, era o local onde a vida boêmia do Rio acontecia, um jovem imigrante judeu vivia todo aquele clima, com olhos atentos. Nada lhe escapava. Ali ele participou das mais fortes experiências da sua juventude. Momentos tão expressivos que os quase 60 anos passados não conseguiram apagá-los da sua memória.

Com o passar dos anos, o jovem foi deixando de ser apenas um talentoso gráfico para se transformar, a partir dos anos 60, num vitorioso empresário na área de comunicação. Nos anos 70, construiu um teatro e, quase ao mesmo tempo, começou a sondar as possibilidades de rever no palco as cenas e cenários da sua juventude.

Quando a novela D. Beija estava alcançando um grande sucesso, aquele imigrante judeu dos anos 30 já havia se transformado no proprietário de uma rede de televisão. Percebeu que a novela poderia reviver, melhor do que um musical para teatro (sua ideia inicial), todo o clima dos anos 30: as músicas de Noel Rosa, as revoluções de 30 e 32, a Intentona Comunista de 35, a deflagração da Segunda Guerra Mundial e outros fatos marcantes. Mas tudo girando em torno de um cabaré que existiu, na mesma época, na Praça 11,o local onde o jovem imigrante judeu havia passado por tantas e tão inesquecíveis experiências. Além das lembranças do cabaré, havia uma outra: a do perfume que na época fazia um grande sucesso entre as mulheres: Kananga do Japão, cujo nome teve origem numa flor tropical. Era um perfume vulgar, mas bastante usado pelas frequentadoras do cabaré Kananga do Japão, instalado na Praça 11. E, sempre que recordava os fatos, o jovem judeu também lembrava o perfume.

Proporcionalmente igual ao sucesso alcançado por D. Beija era o entusiasmo de Adolpho Bloch, o imigrante que viveu todas aquelas experiências e acabou contagiando, no seu entusiasmo, Carlos Heitor Cony. Os dois, então, criaram a ideia básica da novela, que, quase dois anos depois, acabaria se materializando, com o título Kananga do Japão. Inspiraram-se, para isso, no filme Cabaret, de Bob Fosse, que tem suas principais cenas num cabaré mas mostra, ao fundo, o surgimento do nazismo na Alemanha. Aquela era a fórmula que eles adotariam.

"Três tramas marcarão a novela", confirma Wilson Aguiar Filho (que foi também o autor de Dona Beija, Marquesa de Santos e Corpo Santo): "O triângulo amoroso envolvendo a dançarina Dora (Christiane Torloni), o malandro Alex (Raul Gazolla) e o riquíssimo Danilo Viana (Giuseppe Oristânio); a história do Brasil dos anos 30 e a história da Sociedade Carnavalesca Dançante Familiar Kananga do Japão, famosa casa noturna frequentada por políticos, jornalistas. intelectuais, prostitutas, homens do povo e artistas, fundada na primeira década do século na Praça 11. berço do samba. Eu estou me inspirando na história de Adolpho Bloch e do Carlos Heitor Cony. Tenho liberdade de criação dos textos, situações e tudo o mais, dentro daquele contexto que eles criaram."

Wilson acha que a novela ressuscitará os principais fatos que marcaram a história do Brasil na década de 30. E isso, certamente, provocará algumas polêmicas. Mas, acrescenta Wilson: "Kananga do Japão é a história de uma grande paixão. Mesmo quem não tenha nascido na época já ouviu falar de Carmem Miranda, de Ari Barroso ou já escutou a Aquarela do Brasil. Por isso, vejo como gancho imediato da novela a história de ouro da música popular brasileira."

Um paciente e minucioso trabalho de pesquisa foi desenvolvido pelo cenógrafo Rodrigo Cid ao lado do figurinista Colmar Diniz. Enquanto Rodrigo tem uma longa trajetória na criação de cenários para televisão - foi um dos primeiros cenógrafos das TVs Tupi e Paulista, tendo mais de 30 anos de carreira -, Colmar praticamente faz a sua estreia em novelas em Kananga, após ter alcançado consagração em diversos trabalhos em teatro - Gaiola das Loucas, Greta Gargo, Irma Vap, A Noite dos Campeões, Testemunha de Acusação -, onde ganhou dois prêmios Molière.

Tornar realidade um sonho, numa área de 5.600m² de construções, parecia impossível para o cenógrafo Rodrigo Cid e equipe. Mas eles conseguiram. Hoje, em Grumari, praia do litoral sul do Rio de Janeiro, existem sete ruas, 32 fachadas de prédios, várias lojas, além de uma réplica de um bonde com 200 metros de trilhos, que fazem uma pequena volta pela cidade. A construção da cidade cenográfica consumiu 35 mil metros de madeira, 1.600 litros de tinta, seis mil paralelepípedos e mil postes. Da construção participaram seis empreiteiras e 600 pessoas, entre pesquisadores, engenheiros, arquitetos, cenógrafos e operários, sob a supervisão de Rodrigo Cid e Sérgio Perricone.

KANANGA FOI IDEALIZADA PARA SER UM MARCO NA TELENOVELA BRASILEIRA - ''Fico feliz por estar trabalhando em Kananga" , confessa Rodrigo Cid. "E a minha satisfação é maior pela performance da equipe que formei. Há um perfeito entrosamento entre veteranos e novos cenógrafos e arquitetos. Além disso, vendo os primeiros capítulos, notamos que a Tizuka, mais do que qualquer outro diretor com quem trabalhei, está valorizando os cenários ao detalhar a ambientação."

Colmar Diniz está ansioso por ver na tela o efeito do seu trabalho, resultante de quase 180 dias de pesquisas intensas, isoladas ou em conjunto com Rodrigo Cid.

"Gostaria de poder, a esta altura, estabelecer o percentual que alcançamos a partir das nossas expectativas iniciais", diz Colmar. "Mas não estaremos muito longe do que idealizamos, já que dispomos dos recursos para trabalhar bem. Tenho certeza de que o julgamento do público e da crítica será favorável. Aliás, será muito difícil criticar Kananga. Não que ela seja um trabalho perfeito. Não é isso. Mas Kananga foge a tudo o que foi feito antes."

Um marco na televisão. Algo próximo ao que representou Beto Rockfeller em termos de linguagem, há alguns anos, na TV Tupi, quando surgiu o ator Luís Gustavo, que vivia o personagem-título. Kananga do Japão irá marcar sua presença, principalmente, pela linguagem. A formação da diretora Tizuka Yamasaki é mais de cinema do que televisão. "E isso o público irá notar logo nos primeiros capítulos. E algo novo dentro do que vinha sendo feito", prossegue Wilson Aguiar Filho, após revelar que o seu texto está buscando- e encontrando - justamente esta adequação.

"Já fiz mais de 30 personagens entre cinema, teatro e televisão", diz Christiane Torloni. "Sinto, porém, que Dora é uma síntese de muitas personagens que ainda não vivi e de algumas que já tive a oportunidade de viver.. Há uma corrente de Doras dentro de mim. É um personagem lindo para qualquer atriz voar. Apesar de todo o esquema repressor dos anos 30, ela foge absolutamente aos padrões de moralidade da sua época. E vive a sua saga com todos os conflitos que podem advir de uma grande paixão."

Se Christiane Torloni está entusiasmada, o ator Raul Gazolla está eufórico. Em Kananga do Japão ele será Alex, capoeirista, dançarino e excelente jogador de bilhar. Não foi apenas por ter as características que compõem a estrutura psicológica do personagem que foi escolhido:

"Alex mexe com as atividades que sempre fizeram parte da minha vida. Além disso, fui submetido a vários testes, sempre muito rigorosos, para não decepcionar nesse meu primeiro trabalho de vulto."

Houve tempo para composição dos personagens: foram quase três meses de intensos ensaios, dirigidos por Tizuka Yamasaki. Paralelamente, os principais atores receberam aulas de hábitos e costumes daquela época- os anos 30 -, como se dançava etc. e tal, para mais facilmente darem vida aos personagens. Nesse período, também, foram executados figurinos.

LABORATÓRIOS DE CAPOEIRA E GAFIEIRA REVIVEM UM CABARÉ PERFEITO - E todos entraram na dança: Tônia Carrero (Letícia), Cláudio Marzo (Noronha), Júlia Lemmertz (Sílvia), Carlos Eduardo Dolabella (Orestes), Ana Beatriz Nogueira (Alzira), Antônio Pitanga (Ubirajara), Buza Ferraz (Dudu), Carlos Alberto (Chico Vianna), Chico Dias (Olegário), Giuseppe Oristânio (Danilo), Haroldo Costa (Juta), Yara Lins (Zulmira), Lúcia Alves (Dayse), Zezé Motta (Lulu Kelly), Nélson Xavier (Caveirinha), Paulo Castelli (Henrique), Rosamaria Murtinho (Josefina), Rubens Corrêa (Epílogo), Sérgio Viotti (Saul), Tarcísio Filho (Júlio), Via Negromonte (Madalena), Tamara Taxman (Zazá), Cristiana Oliveira (Hanna) e outros.

Cuidadosa está sendo, também, a questão da maquilagem e penteados. Guilherme Pereira diz: "A maquilagem dos anos 30 exaltava a beleza da mulher como nunca, daí exigindo de um profissional um profundo senso estético, precisão e harmonia. Os cabelos em pequenas ondas, as sobrancelhas finas e os olhos caídos faziam um rosto perfeito. Mas qualquer deslize poderia representar um desastre. Então, para se chegar à composição final de cada personagem, é preciso um consenso com o figurino, a arte, cenografia e com a direção da novela, além dos próprios atores", explica Guilherme, dizendo que este entrosamento está sendo vivido em Kananga. As tonalidades de esmaltes e batons foram criadas exclusivamente para a novela, pois a maioria já não existe mais no mercado.

"Não quero, não me interessa e não fui convidada para fazer uma novela tradicional. Pelo contrário: fui chamada por ser cineasta", afirma Tizuka Yamasaki, diretora de Kananga do Japão, que tem Jayme Monjardim na supervisão geral. Carlos Magalhães divide com Tizuka a direção, havendo uma perfeita identificação de linguagem entre eles, daí resultando uma novela que foge aos padrões comuns no gênero. "Ou à mesmice de sempre", como agrega a atriz Rosamaria Murtinho, encantada com a direção de Tizuka. E ela mesma acrescenta: "Nesta novela, eu posso embarcar." Sem dúvida, é tempo de Kananga.

UM SONHO ANTIGO

Autor/Repórter: Adolpho Bloch

Cheguei ao Brasil em 1922, durante os festejos do Centenário da Independência. Frequentava os pavilhões da Feira de Amostras e logo me habituei ao espírito festivo do carioca. Descobri as batalhas de confete na Rua Dona Zulmira e no Boulevard 28 de Setembro. Eram festas que antecediam o carnaval. Aprendi a dançar na Escola Mílton, que ficava na Rua Rodrigo Silva. Dançava-se o tango e o maxixe. As mulatas eram extraordinárias. Depois de cada dança, a bailarina apanhava o cartão e o levava para perfurar na caixa, onde a gente havia deixado o chapéu como garantia. Não aceitavam chapéus velhos. Na época, a moda era o chapéu de palha e uma das meninas me ensinou o truque de passar limão na palha. Com isso, o chapéu ficava como novo. Fazendo amizade com a parceira, ela informava ao caixa um número menor de danças e assim pagava-se menos.

A gafieira mais famosa da época era a Kananga do Japão, localizada na Rua Visconde de Itaúna, mais tarde demolida para construção da Avenida Presidente Vargas. O nome era homenagem a um perfume, Kanangá du Japon, muito usado pelas respeitosas daquele tempo. Ali passava as minhas noites de jovem boêmio.

Como bom carioca, morador na Aldeia Campista e aluno do Pedro II, eu já aprendera a me virar.

O tempo passou. Construí um teatro no Edifício Manchete e sempre pensei em fazer uma peça inspirada na Kananga do Japão. Em 1979, quando convidei o' meu amigo Franco Zefirelli para montar A Traviata no Teatro Municipal - que eu acabara de restaurar - desejei contratá-lo para produzirmos um espetáculo, tendo como cenário a famosa gafieira dos arredores dá antiga Praça Onze.

Em 1983 inauguramos a Rede Manchete de televisão. Outros projetos foram realizados mas nunca esqueci a Kananga. Sempre achei que ali estava o ponto de partida para uma grande e emocionante novela. Conversando com os meus amigos da redação da MANCHETE, decidimos situar a ação da novela nos anos 30, uma década importante na História do Brasil. Tudo aconteceu naqueles anos: as revoluções de 30 e 32, a intentona de 35, o golpe integralista de 38, o nascimento da era do rádio, a fase de ouro da nossa música popular, com Sinhô, Carmem Miranda, Ary Barroso, Noel Rosa; Lamartine Babo, Pixinguinha e Elizete Cardoso, que ali ganhou o seu primeiro concurso. Com alguns desses artistas eu me reunia no Café Nice, na Avenida Rio Branco, ponto de encontro obrigatório de boêmios e intelectuais.

Entregamos o projeto ao Wilson Aguiar Filho para criar e desenvolver personagens e tramas. Fizemos um investimento altamente ambicioso. A cidade cenográfica ficou uma beleza. O elenco é de primeira grandeza. Sob a direção de Tizuka Yamasaki e a supervisão-geral de Jayme Monjardim, temos a certeza de coe Kananga do Japão sera o maior sucesso da televisão brasileira. E assim, quando comemoro meus quatrevingt ans, tenho a felicidade de concretizar um antigo sonho.

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Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 10651