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PUC-Rio
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Jornal/Revista: Jornal do Brasil Data de Publicação: 09/01/1990 Autor/Repórter: Márcia Cezimbra
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REALISMO AGITA NOVELA
Personagens da vida real criticam visão que 'Kananga' tem de seus amigos
Dá para sentir a realidade da novela Kananga do Japão, uma obra de ficção que a Rede Manchete exibe, de segunda a sábado. sobre a história do Brasil nos anos 30 utilizando personagens que existiram de verdade? "Fazendo uma forcinha a gente sente a época, mas falta o espírito do papai", diz a filha do compositor Ary Barroso, Mariúza, de 55 anos. Barroso é um dos personagens da vida real retratados na trama ficcional da novela. Ele é interpretado por Sebastião Lemos. Outro deles é o líder comunista Luis Carlos Prestes. Aos 92 anos, um dos mitos da vida política nacional, Prestes não precisa de muito esforço para se ver no ator Cassiano Ricardo, que já tinha interpretado o mesmo papel no filme O país dos tenentes. "Ele é mais alto do que eu, mas me representa da melhor maneira possível", diz um dos espectadores mais exigentes de Kananga. Afinal, o ex-senador está na Justiça contra uma montagem de sua trajetória que seria encenada na forma de balé. E até hoje não autorizou ninguém a filmar a biografia de sua primeira mulher, a revolucionária Olga Benário Prestes, escrita pelo jornalista Fernando de Morais.
"A montagem do balé é um insulto: Olga, que era judia mas não dava a isso importância alguma, gritaria vivas a Israel. E os produtores alemães e americanos interessados no filme fizeram muita chantagem para rodar um fita apenas policial. Não autorizei", justifica. Agora Luís Carlos Prestes relaxou e gostou também da Olga vivida pela atriz Betina Vianny na novela da Manchete - "muito bonitinha, muito interessante" -, embora a Olga de verdade não usasse rendas e sedas decotadas nas reuniões clandestinas do partido, `Como aparece na televisão. "Ela já chamava atenção normalmente e tinha de ser discreta para não aparecer. Nunca foi vamp", analisa Prestes. As críticas de Prestes são quase irrelevantes. Ele reclama que "havia músicas com data errada no começo da novela" e retifica que não passeava "todo de casimira" com Olga pela praia de Ipanema. "A gente ia de roupa de banho, para mergulhar no mar", revela. A parte política não merece um senão do articulador do levante: comunista de 1935, episódio que, aliás, estará esta semana no ar. Prestes não deve então perder um capítulo até o final deste mês.
Sem qualquer preconceito contra um gênero tido como alienante pelos comunistas da década de 70, Luís Carlos Prestes vai além de se admitir um telespectador assíduo. Ele considera "um fato novo no Brasil" a linha informativa de Kananga. "Esta novela foge dos padrões da Globo, onde todos usam seda e vivem em palácios para incentivar o consumismo", diz ele.
Kananga enfrenta problemas com certo tipo de espectador por ser uma obra de ficção na qual os delírios de seu autor misturam-se aos fatos verdadeiramente históricos. Um dos delírios: um ponto de Olga e Prestes embaixo da gafieira Kananga do Japão, na Praça Onze. "Eu não freqüentava aquela gafieira", reclama o político. Há ainda quem não perceba o realismo de Kananga de maneira alguma. É o caso de Aurora Miranda, de 75 anos, irmã da antológica Carmen Miranda. Por ter ficado viúva recentemente, Aurora não assiste à novela, mas soube, pelas amigas, que a atriz Stela Miranda, que interpretou Carmen em alguns capítulos, nada tinha a ver com sua irmã. E, mesmo que tivesse visto, Aurora não aceitaria Stela como Carmen. "Para mim, só uma artista lembra Carmen. É Marília Pêra. Eu queria que fosse ela e, mesmo num filme norte-americano sobre Carmen, deveriam chamar Marília Pêra." Um dos biógrafos de Carmen Miranda, Cássio Barsanti, autor do álbum Carmen Miranda, foi ainda mais rigoroso no julgamento de Stela: "É fraca, dura, sem expressão corporal. Fora os erros básicos de figurino. A Carmen dos anos 30 vestia tailleur. A Carmen baiana, que esteve na novela, só apareceu na década de 40 nos Estados Unidos. E, ainda assim, vestiram a atriz de rumbeira, o que Carmen nunca foi. Baiana não é rumbeira", critica.
Outra que tentou, mas não conseguiu, ver realidade na interpretação dada pelo ator Wandi Dorattioto ao locutor Cesar Ladeira, foi a atriz Renata Fronzi, viúva do radialista. "Eu ainda não morri e a produção podia ter me pedido uma foto do Cesar. Ele era bonito, de cabelos lisos e bigode. Não era este bicharoco que nem a voz dele tem. E foi a voz do Cesar que me levou na conversa. Os meus filhos, Cesar e Renato, acharam o personagem ridículo e tive que dizer aos meus netos que aquilo não era o seu avô", conta Renata. A indignação foi tamanha que Renata pediu à Manchete que retirasse o sobrenome Ladeira do locutor. "Aí ele virou Cesinha. Tudo bem." Ela faz questão de deixar bem evidente, porém, a sua admiração pelo script , pela direção e pelo elenco de Kananga. "É um trabalho maravilhoso, que eu vejo todo dia. A Christiane Torloni está divina. O Francisco Alves (Caíque Ferreira) e o Mário Reis (Fernando Eiras) estão ótimos. Só o Cesar me indignou."
Nada disso importa ao autor Wilson Aguiar Filho. Desde o primeiro protesto contra as músicas que tocavam fora de época em Kananga, ele afirma que quer ver o circo pegar fogo. Ou seja: muito bate-boca sobre o que é, o que foi e o que seria a realidade dos anos 30. "Eu respeito a história dos anos 30 com toda a liberdade de um autor de ficção. O episódio de Prestes é a história de um mito, apesar do rigor com fatos históricos. Eu invento personagens para conviver com estas pessoas reais. A Dora (Christiane Torloni) vai conviver agora na prisão com Olga Benário. É realidade e ficção", explica. E ao telespectador decepcionado por não reviver totalmente o passado, o autor apresenta o consolo de que a história não se repete jamais. "A novela não é um espelho e nada será exatamente como foi a época."
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Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 11129