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Jornal/Revista: VEJA
Data de Publicação: 05/04/2006
Autor/Repórter: Marcelo Marthe

JEITINHO BRASILEIRO

A nova novela da Record tem personagens ambíguos e Lucélia Santos tentando falar como um ator chinês

Na novela Cidadão Brasileiro, da Rede Record, nenhum protagonista é aquilo que sua posição na trama faria supor. O mocinho, Antônio Maciel (Gabriel Braga Nunes), vive no limite da canalhice. A vilã, Fausta (Lucélia Santos), não é assim tão malvada. A ambigüidade é deliberada. O noveleiro Lauro César Muniz, que criou sucessos como O Salvador da Pátria na Rede Globo e saiu da emissora sem disfarçar sua insatisfação, quis fazer da história de Maciel - o tal cidadão brasileiro - uma alegoria dos dilemas nacionais. O folhetim acompanha cinqüenta anos do personagem, de sua ascensão numa cidadezinha fictícia nos anos 50 aos dias de hoje. Ele se debate entre ser pobre e honesto e corromper-se para subir na vida. Fausta também é uma contradição em termos: uma vilã de boa índole. A golpista não quer destruir ninguém, só faturar em cima dos otários. A interpretação de Lucélia contribui para amenizar os pontos negativos da personagem. Depois de vinte anos sem ter destaque em novelas (seu último trabalho na TV foi um papel menor em Malhação, em 2002), a eterna escrava Isaura voltou à cena cheia de histrionices. Desde sua estréia, há três semanas, Cidadão Brasileiro se mantém estável na média de 13 pontos no Ibope, desempenho satisfatório para a Record. O folhetim é uma peça na estratégia de criar uma grade de programação. Graças à seqüência formada pelo Jornal da Record, pela novela Prova de Amor e, agora, Cidadão Brasileiro, a Record vem superando o SBT na briga pela vice-liderança do horário nobre.

Embora até agora represente um êxito, Cidadão Brasileiro tem seus problemas. A novela herda uma audiência em torno dos 20 pontos de Prova de Amor, mas, mesmo indo ao ar praticamente sem comerciais (o que em tese dificulta a fuga de espectadores), nos minutos finais registra apenas a metade disso. Há falhas na iluminação e na sonorização, cenas arrastadas e a maquiagem às vezes é carregada. Ao contrário do que se poderia esperar, contudo, a ambigüidade dos personagens centrais não atrapalha o seu desempenho. A tradição mostra que mocinhos e bandidos bem marcados são a aposta mais segura em um folhetim. O espectador tende a rejeitar novelas em que há falta de definição entre o lado do bem e o do mal. Maciel exibe traços mulherengos que, nos folhetins, costumam estar associados aos vilões ou aos dom-juans cômicos. Em vez de romântico, ele é inconstante e malicioso. "A natureza foi generosa comigo", gabou-se ele à dondoca Luíza (Paloma Duarte) quando ela se assombrou com seus dotes amorosos. Ele também não é bobo quando o assunto é dinheiro. Depois de ser roubado pela vilã Fausta (Lucélia Santos), aliou-se a ela sob a promessa de ganhar uma bolada num golpe. Para os espectadores, suas derrapadas parecem ser contrabalançadas por outras características, como a ingenuidade. Numa pesquisa, a Record detectou que as espectadoras até apóiam suas artimanhas. Em vez de tomar a suave personagem da atriz Carla Regina como mulher, conforme está previsto, elas preferem vê-lo ao lado da fogosa e rica jovem vivida por Paloma Duarte. Ou seja: torcem para Antônio dar o golpe do baú.

Quanto à vilã Fausta, chama atenção o tom de voz que Lucélia emprestou a ela. A atriz tem uma explicação para isso: "Fausta fala com a cadência de um ator chinês que vi há pouco no cinema". Lucélia - que é budista - não resiste a uma influência oriental. Depois de encerrar sua última novela na Rede Globo, em 1986, a atriz mergulhou em viagens espirituais. No fim dos anos 80, ao lado do então marido, John Neschling, hoje regente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, tomou o chá do santo-daime. "Eu e Johnny sempre tivemos a mente aberta", diz. A conversão ao budismo, mais tarde, marca o seu dia-a-dia. Hoje, ela toma decisões - como a de participar de Cidadão Brasileiro - amparada em seu guru, o butanês Khyentse Norbu. "Lamas como ele sabem coisas que a gente nem imagina. São mentes evoluídas", afirma.

Lucélia está convicta de que o mundo material é uma ilusão. "A realidade como a vemos não existe. Tudo o que acontece externamente são projeções da mente", diz ela. A atriz vai além: "Nossas vidas passadas também são projeções. É como se a mente tivesse se dispersado e ficasse vagando até se reconectar com o seu cristal essencial. Aí, pá, é uma iluminação. Não tem mais reencarnação, não tem mais darma, nem carma. O nível de abstração é nessa plataforma mesmo. Dá para entender?". Não, Lucélia, não dá. Mas bem-vinda de volta às novelas.

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Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 118873