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PUC-Rio
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Jornal/Revista: O Globo Data de Publicação: 06/08/2003 Autor/Repórter: Simone Mousse e Taís Mendes
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FERNANDA VAI TER QUE SER BALEADA DE NOVO
Depois de muita polêmica e sete horas de trabalho, a cena da novela “Mulheres apaixonadas”, da Rede Globo, em que a personagem Fernanda (interpretada por Vanessa Gerbelli) morre com uma bala perdida, foi finalmente gravada ontem, no Leblon, diante de centenas de curiosos. A cena, porém, não valeu, porque foi atrapalhada pela luz de um flash acionado no exato momento em que a personagem levou o tiro. Irritado e já dispondo de pouca luz natural, o diretor Rogério Gomes invalidou a seqüência e repetirá a gravação amanhã. As cenas estão previstas para ir ao ar nos capítulos de sábado e segunda-feira.
Parte da Rua Dias Ferreira, no Leblon, precisou ser interditada no trecho entre a Rua General Espínola e a Avenida Ataulfo de Paiva. O trânsito, no entanto, só apresentou retenções pela manhã. Além dos cerca de mil curiosos que assistiram, do início ao fim, aos trabalhos, 400 pessoas, entre atores, figurantes, dublês e técnicos, circulavam pelo local. A gravação também atraiu a imprensa nacional e internacional. Uma equipe da Reuters pretende incluir a cena num documentário sobre violência que deverá ser exibido nos países da América Latina.
Tiro de festim faz muita gente procurar abrigo - Os interessados em ver as gravações — cujo início estava marcado para 10h — começaram a chegar às 8h. Sem arredar o pé, o público assistia atento a cada tomada, aplaudindo no final. O primeiro estampido foi ouvido às 13h05m e provocou uma reação curiosa: muita gente se assustou e se escondeu atrás de carros e postes:
— Apesar de saber que é uma filmagem, fiquei um pouco nervosa. Já passei por uma situação semelhante — contou a jornalista Jeainia Maria de Souza e Silva, que, ao lado de uma amiga, assistia às cenas da mesa de um bar.
O comércio da Rua Dias Ferreira se transformou em arquibancada. A aposentada Rosa Sardas se espantou ao ver Vanessa Gerbelli ser preparada para a primeira cena:
— Nossa! Coitada! Para que tanto laquê?
A violência abordada pelo autor Manoel Carlos dividiu a opinião dos espectadores. A turista mineira Viviane Gomes de Souza elogiou.
— É importante mostrar como está a violência no Rio e em todo o país. Onde moro, em Ubá, posso dormir com as portas abertas.
Já na opinião da carioca Patrícia Sampaio, moradora do Leblon, as cenas gravadas na Dias Ferreira podem gerar mais violência no bairro:
— É propagar a violência. Estas cenas gravadas aqui vão estimular ainda mais a bandidagem no bairro.
Público só foi embora no final do dia - Realidade ou ficção, o fato é que as cenas protagonizadas por Tony Ramos e Vanessa Gerbelli emocionaram o público, que só deixou o local no fim do dia.
— Saí de casa às 7h para chegar cedo e conseguir um bom lugar. Não perco um capítulo da novela — disse Aurora Silva, de 58 anos, moradora do Méier.
Para compor a cena, a produção da novela usou 20 dublês (sendo 12 policiais), 130 carros e 120 figurantes. Centenas de tiros de festim foram disparados por atores que interpretavam policiais e assaltantes durante uma perseguição no meio de um engarrafamento. Para a cena em que o carro de Téo (Tony) é atingido por uma saraivada de balas, o pára-brisa original foi trocado por um vidro especial, próprio para ser estilhaçado. Na trama, Téo leva um tiro de raspão na cabeça e Fernanda é atingida no peito. Parte do trabalho, no entanto, agora terá que ser refeito.
ESTATÍSTICA OFICIAL SÓ APONTA 26 CASOS
Autor/Repórter: Ana Wambier
Os números oficiais da Secretaria de Segurança Pública expõem a violência do Rio: desde janeiro são 26 casos de balas perdidas. Oficiosamente, porém, sociólogos contestam os dados e afirmam que o número é superior ao divulgado.
Verdade ou não, a sensação do perigo de ser vítima desse tipo de ocorrência é bem mais expressiva do que os números da secretaria. Segundo pesquisa do Ibope realizada em 2002 — para medir o medo do brasileiro diante de vários assuntos — o temor de ser atingido por uma bala perdida figura em quinto lugar, entre 12 possíveis respostas. Se o universo se restringir às capitais da região Sudeste, a ameaça de ser atingido por balas perdidas sobe para terceiro lugar, perdendo apenas para o medo de pegar uma doença grave e o de ver os filhos envolvidos com drogas.
Outra pesquisa, esta feita pelo Instituto DataBrasil da Universidade Cândido Mendes, mostra que ser vítima de um tiro é o segundo maior medo do carioca (34%). O primeiro é ser vítima de assalto (41%).
Nada mais verossímil para uma cidade que praticamente deu origem à expressão “bala perdida”, após registrar tantos casos de pessoas atingidas. Ib Teixeira, pesquisador de temas sociais da Fundação Getúlio Vargas, afirma que essas ocorrências costumavam ser fenômeno tipicamente carioca, mas ao longo dos anos se estenderam a outras cidades.
Em 2002, segundo ele, 204 pessoas foram vítimas de bala perdida no Rio, de acordo com levantamento retirado de publicações de jornais.
— Isso mostra que os dados da secretaria estão subestimados. Os 26 casos apontados, na minha estimativa, não chegam nem a 10% dos casos — disse Ib Teixeira.
RELEMBRE OUTROS CASOS
Um dos primeiros casos de bala perdida que chocaram o Rio foi o de Fernanda Carracelas, de 3 anos, morta em 1989 dentro do pátio da escola, em Vila Isabel, com um tiro na cabeça. Em fevereiro de 1992, uma bala perdida matou o ator Older Cazarré, de 57 anos, enquanto ele dormia em seu apartamento em Copacabana.
No dia 5 de maio passado, a estudante Luciana Gonçalves de Noves foi baleada dentro da Universidade Estácio de Sá, no Rio Comprido. Ela está até hoje internada num hospital sem os movimentos dos membros. Outra estudante, Gabriela Prado, de 14 anos, morreu em março vítima de bala perdida quando entrava na estação do metrô de São Francisco Xavier, na Tijuca.
No réveillon de 1998, Jéssica Lima Vidal, de 7 anos, foi morta dentro de casa, na Favela Nova Brasília, em Bonsucesso. O tiro atingiu sua cabeça.
CRÍTICAS SÃO ESQUECIDAS
A cena foi gravada, a personagem Fernanda vai mesmo morrer em “Mulheres apaixonadas”. Agora, quem era irredutivelmente contra o episódio da bala perdida na novela das oito acabou revendo sua opinião. O secretário municipal de Turismo, Rubem Medina, por exemplo, disse ontem que era “direito do autor fazer o que quisesse com sua personagem”. E completou afirmando que nem a imagem do Rio, nem o turismo seriam afetados.
O presidente do Sindicato de Hotéis do Rio, Alexandre Sampaio, que já foi contra a cena, afirmou que “a liberdade de expressão tinha que ser preservada”. O prefeito Cesar Maia afirmou que o Rio não será prejudicado, porque “a novela tem exaltado espetacularmente a cidade”.
Quem já foi vítima da violência das balas perdidas elogiou a gravação do capítulo da novela.
— Acho ótima toda publicidade. As pessoas ficam dizendo que sentem pena porque a Fernanda vai morrer, mas eu pergunto: e a Gabriela que morreu na vida real? — disse Cleyde do Prado Maia Santiago Ribeiro, mãe de Gabriela, de 14 anos, morta por uma bala perdida num assalto à estação São Francisco Xavier do metrô, na Tijuca, em 25 de março.
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Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 89872