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PUC-Rio
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Jornal/Revista: Jornal do Brasil Data de Publicação: 01/08/1989 Autor/Repórter: Márcia Cezimbra
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UMA TRILHA FORA DO RITMO
Músicas que 'Kananga do Japão' leva ao ar não são da época em que se passa a novela
''Eu sabia que a Lygia ia rodar a baiana." O ator e pesquisado de música Haroldo Costa, Juca da novela Kananga de Japão, exibida diariamente às 21h30 na Rede Manchete, já esperava "um bom samba" com "as mancadas" da pesquisa musical da novela assinada por Fernando Lédeis, sobre uma época de ouro da MPB - a década de 30. Não foi porém, na ala das baianas da Vila Isabel, onde costuma desfilar, que a pesquisadora Lygia Santos botou a baiana pra rodar. Na última quinta-feira, a filha do compositor Donga, autor de Pelo telefone, o primeiro samba do Brasil, teve um ataque de nervos na sala de sua casa, em frente à TV. Ela não suportou ver a cena em que os atores Cláudio Marzo e Carlos Alberto comentavam a briga dos compositores Sinhô e Pixinguinha ao som de Pelo telefone. A briga, de 1919, que rendeu sambas antológicos como o Já te digo, não poderia ser ilustrada com um samba de 1917 numa novela cujos primeiros capítulos se passam no verão de 1930.
A tal mancada doeu também em Haroldo Costa. Ele comentou ter salvo a novela de outro equívoco na semana de estréia, quando conseguiu retirar a música Ride palhaço, uma paródia de um comercial feita por Lamartine Babo em 1934. "Nada impede que a gente cante uma música velha em 30, mas cantar uma de 34 não dá. A cena com Pelo telefone só vi no ar, não pude interferir. Sou apenas um ator, mas sei que os sambistas vão me cobrar estas mancadas", diz Haroldo. O salgueirense, especialista em história do samba, distribui explicações -uma delas a Elizeth Cardoso, uma das maiores cantoras do Brasil e sobrinha do verdadeiro Juca, dono do clube de rancho Kananga do Japão. "Eu já disse a Elizeth que o Juca da novela não é uma biografia do tio dela. É uma referência dentro de uma ficção", conta Haroldo. Embora não reconheça seu tio na novela, a divina, apelido dado pelo próprio Haroldo, não desgruda os olhos da Manchete. Elizeth se recusa a fazer críticas, mas Lygia, outra ligada na novela, não faz por menos: "A gente tem que falar sim. É um absurdo que uma produção de uma época tão importante, retratada com tanta competência pela diretora Tizuka Yamasaki, passe um erro de informação para todo o Brasil. Eu, se fosse o Adolpho Bloch (autor do argumento e presidente da emissora), esganava este Fernando Lédeis", esbraveja Lygia, no auge de seu giro de baiana.
Outro erro seria o samba que a novela mostrou como o que Sinhô compôs para o Carnaval de 30 da Kananga do Japão - Cabeça de promessa -, escrito por ele, na verdade, em 1925. Antes que voe a primeira garrafa, o pesquisador Fernando Lédeis esclarece aos sambistas que o texto de Kananga não pretende ser didático. Foi "por respeito à indicação do autor Wilson Aguiar Filho", por exemplo, que Fernando deixou Pelo telefone tocando no meio da conversa sobre a briga entre Sinhô e Pixinguinha. A escolha do samba de 1925 para o Carnaval de 1930 foi também proposital. "A gente enfrenta grandes dificuldades, porque os arquivos do Museu da Imagem e do Som estão todos encaixotados. Não pude encontrar o samba do Sinhô que fala das sabinas, as dançarinas do Kananga, feito para o carnaval de 30. Então escolhi o Cabeça de promessa, uma marcha-rancho com o mesmo clima", diz. Ele não respeitou, no entanto, "outra indicação de Wilson"- a inclusão de Ride palhaço em 1930 porque seria "uma transgressão".
AUTOR GOSTA DA POLÊMICA - O autor da novela, Wilson Aguiar Filho, dá boas gargalhadas com a discussão em torno dos sambas em Kananga do Japão. "Eu quero é isso mesmo. Vamos discutir tudo nos jornais. De que ano era o samba do Sinhô que tocou ontem? De que ano?", pergunta o escritor já habituado a levantar o Ibope da Manchete com Dona Beija e Corpo santo. Ele só não poderia esperar a polêmica já nos dez primeiros capítulos, nem o índice de 28 pontos de audiência às 21h30 da sexta-feira passada no Rio e de 12 em São Paulo. "Eu me lembro que a Dona Beija só deu 40 pontos no capítulo 40. Nunca esqueci. Agora está demais. A Tizuka está arrasando e o Raul Gazolla é o galã que vai direto da Kananga para a novela das oito na Globo", diz, satisfeito.
O público da polêmica terá muito mais assunto depois da morte de Sinhô e de Juca, marcadas por Wilson para os capítulos 26, 27 e 28. "Os dois vão morrer do coração, um atrás do outro. O Haroldo Costa e o Paulo Roberto Marques estão arrasados. Eu adoro os dois, mas tive que matá-los."
As mortes desencadeiam uma onda de vinganças entre Alex (Raul Gazolla) e a família Viana, os milionários da trama.
Alex compra uma rádio em 1932 por onde vão desfilar as cantoras da época, Aí haverá mais confusão. "Uma telefonista da radio, Clotilde (Karin Acioly), vai se dizer íntima das cantoras e contar horrores da vida de1as . Quero ver todo mundo no jornal dizendo o que foi ou não foi verdade.
SEM A SONORIDADE DE 30
Autor/Repórter: João Máximo
Ver (e ouvir) Kananga do Japão traz à lembrança certos filmes de época em que a trilha sonora tem papel importante. Por exemplo, Cotton Club, de Francis Coppola. Nele, como na novela da Manchete, boa parte da ação transcorre numa casa noturna onde se dança e se ouve música. E, curiosamente, na mesma época: inicio dos anos 30. No Cotton, brilhava a orquestra de Duke Ellington, começavam a ficar conhecidos anônimos artistas do Harlem e despontava para a fama a mulata Lena Horne. Na, Kananga, o astro era Sinhô, os artistas eram os chorões e maxixeiros da Cidade Nova e a mulata que mais tarde viraria estrela era ninguém menos que Elizeth Cardoso. Mas as semelhanças param por ai.
Em Cotton Club, a trilha sonora é entregue ao admirável John Barry, que escreveu não mais do que alguns temas e comentários melódicos para serem usa dos, discretamente, como música de fundo, e no mais trabalhou em cima de uma detalhada pesquisa sobre o que era ouvido no Cotton Club da época. Não sô 'o que' mas também 'o como'.
Os responsáveis por Kananga do Japão também trabalharam em cima de uma pesquisa que forneceu a Guto Graça Melo uma relação, ano a ano, das músicas da época. Daí serem imperdoáveis certos anacronismos. Por exemplo, logo no primeiro capítulo, numa festa de noivado em Santos, ocorrida nos primeiros dias de 1930, os pares dançam Mood indigo, que Duke Ellington, o compositor, só lançaria no fim do ano. No mesmo capítulo, quando se comenta o que Sinhô está produzindo para o próximo carnaval, o exemplo sonoro é Fala meu louro, de 10 anos antes. Nos capítulos seguintes, equívocos ainda maiores. Exemplo: Noel Rosa, em 1930, ainda não havia acontecido, e eis que o seu Coisas nossas é ouvido em moderníssima interpretação coral. My funny valentine, pelo contrário, é uma antecipação: os cariocas de 1930 a ouvem sete anos antes de Rodgers & Hart a terem escrito.
Dizem que o culpado por este caos de datas não é Guto Graça Melo, mas o próprio autor, Wilson Aguiar Filho. Mas uni; pecado, pelo menos, é de Guto: os arranjos usados em alguns momentos da trilha. Não só pelo indefectível sintetizador, mas, sobretudo, por mudanças nos andamentos das músicas e pelas instrumentações que pouco têm a ver com Pixinguinha, Arnoldo Gluckmann, Simon Bountman, os arranjadores da época. Já que imitamos tudo, por que não imitar John Barry e dar à Kananga o verdadeiro som dos 30 que o compositor inglês fez questão de dar ao Cotton?
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Fonte: Banco de Dados TV-Pesquisa - Documento número: 9846